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Covid-19 e o risco de prisão pelo não pagamento de tributos

Por Marco Behrndt , Juliana Sá de Miranda e Bruna Dias Miguel
Atualização:
Marco Behrndt, Juliana Sá de Miranda e Bruna Dias Miguel. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No meio à crise econômica ocasionada pelo coronavírus (covid-19), um ponto preocupante assume relevância, além da própria paralisação das atividades de muitas empresas e o receio de eventual diminuição do quadro de funcionários: o não recolhimento de ICMS pelas empresas para reduzir os danosos impactos financeiros ocasionados pela covid-19 poderá resultar na responsabilização criminal dos seus sócios, administradores ou gerentes?

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Como de conhecimento, no fim do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o não pagamento do ICMS caracterizaria crime contra a ordem tributária (RHC 163.334).

Com essa decisão do nosso Tribunal Máximo, como fica a situação dos empresários que precisam apurar e recolher o ICMS devido (muitas vezes sem sequer ter recebido o faturamento de seus clientes), a despeito de estarem com as portas baixadas por conta de determinações dos entes públicos?

Diante da pandemia da covid-19, os entes públicos determinaram o isolamento social e o fechamento dos estabelecimentos comerciais não essenciais. Embora seja prudente e necessário, isso é devastador para as atividades empresariais. O cenário é de redução drástica nas vendas e inadimplemento em escala por parte dos clientes.

Como irão agir os Ministérios Públicos Estaduais diante da atual situação vivenciada pelo Empresariado que não recolher o ICMS?

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Antes de adentrar propriamente no posicionamento do STF e na sua possível interpretação penal do estado de calamidade pública que vivemos em razão da covid-19, importante traçar breve histórico do assunto nos Tribunais do país.

Até meados de 2018, pairava um posicionamento majoritário no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que não configuraria crime a situação de contribuinte que confessava a existência de um débito em suas obrigações acessórias e, posteriormente, deixava de realizar o seu recolhimento (o denominado tributo "declarado e não pago"), mas sim mero inadimplemento fiscal (AgRg no AREsp 1138189/GO, AgRg no REsp 1632556 /SC  e HC 161.785/SP).

E mais, segundo esse posicionamento do STJ, para responsabilizar pessoalmente um sócio, gerente ou diretor de determinada empresa pelo pagamento de determinado tributo, as Fazendas Públicas tinham o dever de comprovar no caso concreto, seja no próprio ato de lançamento do crédito tributário ou já no âmbito do processo judicial, que o responsável, durante o exercício da atividade de gerência ou de administração, havia agido de forma dolosa, tendo contribuído diretamente para o não recolhimento de tributos.

Para a surpresa de muitos, em 2018 houve uma reviravolta dessa discussão no próprio STJ. A 3ª Seção do Tribunal, no julgamento do HC nº 399.109/SC, por maioria, consolidou o entendimento de que o não recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e de Serviços - "ICMS", seja em operações próprias ou em operações de substituição tributária, ainda que devidamente declaradas e confessadas ao fisco, configuraria crime de apropriação indébita tributária.

O entendimento, portanto, foi o de que "o sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento  subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido". Asseverou-se, ainda, que a descrição do tipo penal do crime de apropriação indébita tributária conteria a expressão "descontado ou cobrado", ampliando, assim, a imputação do crime não apenas para clássica situação de terceiro responsável que faz o desconto do tributo devido pelo contribuinte e não o recolhe aos cofres públicos (substituição tributária), mas também para situação em que o contribuinte confessava o imposto devido (ICMS próprio) e não o recolhe, mas "repassava" no preço do produto o valor do tributo para seu cliente.

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Esperava-se que o STF colocasse fim a essa discussão, sedimentando o entendimento de que o não recolhimento de ICMS próprio não configura crime de apropriação indébita nos termos do art. 2, II, da Lei nº 8.137/91, com base em dois principais argumentos.

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O primeiro é que a equiparação do ICMS próprio ao ICMS devido por substituição tributária, conforme decisão do STJ, é indevida.

Como sabido, a conduta que configura o crime de apropriação indébita é específica: quando um terceiro, que tem a posse pacífica de um bem móvel de outrem, se apropria indevidamente desse bem.

Na esfera tributária, a apropriação indébita pode ocorrer quando um terceiro, indicado como responsável pelo recolhimento do imposto, procede à retenção/desconto de determinado valor em nome do contribuinte e não realiza a transferência desse valor ao cofres públicos (exemplo clássico é a contribuição devida ao INSS pelo empregado, que é descontada pelo empregador no momento do pagamento do seu salário, ou mesmo o desconto do FGTS ou, ainda, o ICMS devido no regime de substituição tributária, cuja responsabilidade pela retenção e recolhimento desse imposto muitas vezes é exclusivamente do industrial em nome de todos os contribuintes da cadeia). No caso de ICMS próprio, a obrigação de recolher o imposto é do próprio contribuinte, que não tem a posse de algo que pertence a outrem, no caso ao Fisco, não existindo a possibilidade de tomar para si coisa alheia. Trata-se, com a máxima vênia, de típico caso de inadimplemento fiscal (mesmo que esse custo seja repassado em preço para terceiro) e, pensar o contrário, com todo o respeito, seria criminalizar a própria dívida.

O segundo argumento, é que o entendimento do STJ equiparou o mero inadimplemento fiscal, nas situações de tributo "confessado e não pago", isto é, aquele que declara a ocorrência do fato gerador em seus livros fiscais, mas não efetua o recolhimento, com a situação do contribuinte que dolosamente tem a intenção de esconder das autoridades fiscais a própria ocorrência do fato gerador, como a hipótese tipificada como fraude. O dolo está associado a retardar o conhecimento do Fisco acerca do nascimento da obrigação de pagar o tributo e de que o contribuinte não procedeu ao seu recolhimento.

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No entanto, apesar de todas as expectativas, o Plenário do STF confirmou o entendimento do STJ e, portanto, o não recolhimento do imposto estadual, independentemente de sua modalidade, ICMS próprio ou ICMS-ST, em tese, é considerado crime.

A tese fixada pelo STF foi: "o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990".

Apesar de ainda não ter sido publicado o acórdão do julgamento pelo STF, dois pontos relevantes chamam a atenção: o primeiro ponto é do que seria considerado como "contumaz" e o segundo é a necessidade de caracterização do dolo como sendo elementar para a imputação da responsabilidade pessoal dos administradores das empresas."

A ausência de definição pelo STF da expressão "contumaz" acabou abrindo espaço para que os Estados "suprissem" essa lacuna, legislando, cada qual de sua forma, sobre a atitude do contribuinte que deveria ser assim enquadrada (por ex., para alguns, o mero inadimplemento por três meses consecutivos pode ser considerado como postura contumaz). Consequentemente, com a definição na legislação estadual sobre o que será considerado como devedor que age de forma "contumaz", aliado à comprovação do dolo pelo não recolhimento de tributos, teríamos, em tese, a legitimação para a responsabilização tributária (pessoal) e criminal desses terceiros.

Contudo, mais uma dúvida que surge no atual cenário econômico e jurídico é: os administradores de empresa poderiam, neste momento de calamidade pública, já reconhecida e decretada no país, serem responsabilizados penalmente pelo não recolhimento de tributos, especialmente o ICMS? Pensamos que não.

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Não há como sustentar a existência de dolo na conduta de contribuinte que declara como devido determinado tributo e não procede ao seu recolhimento em situação de sobrevivência da Empresa e da manutenção dos seus funcionários. Quiçá então a situação de calamidade pública que assola o país - e o mundo - em que há o fechamento obrigatório de estabelecimentos comerciais, com redução de vendas e aumento de inadimplemento.

O não recolhimento de tributos nesse momento, a nosso ver, configura verdadeiro estado de necessidade, figura excludente de ilicitude prevista no Código Penal (artigos 23, I e 24) aplicada a fato praticado para "salvar de perigo atual", que não foi provocado por sua vontade, nem poderia ser evitado.

A partir da análise desses elementos, estamos convencidos de que o momento atual, que está sendo vivenciado por praticamente todas as empresas do país (ainda que algumas em maior escala do que outras), enquadra-se nos elementos caracterizadores do estado de necessidade, já que exigirá a adoção de medidas extremas por seu corpo diretivo, a fim de evitar a paralisação de suas atividades, bem como a manutenção do seu quadro de funcionários, senão a postergação no recolhimento de tributos.

Vale dizer, ainda que a inexigibilidade de conduta diversa - que nada mais significa do que o princípio pelo qual não sendo possível cobrar do autor o comportamento nos termos da lei, não se pode puni-lo -  é tese amplamente aceita por nossos Tribunais em matéria penal-tributária, quando há a comprovação de grave dificuldade financeira nas empresas.

Por essas razões, enquanto não há o aclaramento por parte do STF sobre a definição de "contumaz" ("não recolhimento contumaz"), e considerando os próprios elementos expressamente previstos na legislação penal sobre a exclusão de ilicitude, estamos convictos de que deve haver uma ponderação por parte dos Ministérios Públicos Estaduais (e também o Federal e Municipal, caso se entenda pela extensão dos efeitos do entendimento dos Tribunais Superiores) para a penalização daqueles que estão no comando das pessoas jurídicas neste momento de crise econômica ocasionada por fatos alheios a sua vontade.

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Deve ser diferenciada neste momento a postura que poderia ser adotada em uma situação econômica regular, em que o não recolhimento de tributos poderia ser resultado, de fato, de uma conduta dolosa por parte dos administradores da empresa, praticada com o intuito de enganar e prejudicar o Fisco. Mas não é esse o cenário atual. E por essa razão, a despeito de ainda poder haver um pronunciamento do STF quanto à extensão dos efeitos do julgamento de matéria penal para o Direito Tributário, espera-se por um bom senso das autoridades penais nesse sentido, não responsabilizando criminalmente aqueles que neste momento de calamidade pública estão tendo que adotar as medidas necessárias para não contribuírem com a estatística do desemprego no país.

*Marco Behrndt e Juliana Sá de Miranda são, respectivamente, sócios da área tributária e penal, e Bruna Dias Miguel, advogada sênior do escritório Machado Meyer

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