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'Corrupção no Brasil é endêmica', diz procurador

Ao falar sobre escândalo na Petrobrás, Vladimir Aras, da Cooperação Internacional da Procuradoria Geral da República, afirma que colaborador não é traidor

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Por Redação
Atualização:

Por Fausto Macedo e Ricardo Brandt, enviado especial a Curitiba

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A colaboração premiada é um instrumento que deve ser empregado para o enfrentamento de crimes graves, segundo avaliação do procurador regional da República Vladimir Aras. "Não é uma panaceia para qualquer tipo de investigação criminal", ele recomenda.

Há 12 anos no Ministério Público Federal - ingressou na instituição em 2003 -, Vladimir Aras exerce atualmente a função de secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria Geral da República. Ele compõe o Grupo de Trabalho para auxiliar o procurador geral da República Rodrigo Janot na análise dos desdobramentos da Operação Lava Jato, em curso no Supremo Tribunal Federal.

A Lava Jato é a incrível operação que desmontou esquema de corrupção e propinas na Petrobrás. Deflagrada em março de 2014, a operação mandou para a cadeia doleiros, lobistas e empreiteiros das maiores construtoras do país que amargam uma temporada na Custódia da Polícia Federal no Paraná.

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Vladimir Aras. Foto: Reprodução

Um fator foi decisivo para a queda do cartel de empreiteiras que durante longos anos assumiram o controle de contratos bilionários da estatal petrolífera: a delação premiada. Pelo menos onze alvos da Lava Jato fizeram delação - entre eles o ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás, Paulo Roberto Costa, o doleiro Alberto Youssef e dois executivos que relataram como operava a rotina de malfeitos.

Vladimir Aras, o procurador, traz em seu currículo uma larga experiência no combate ao crime organizado, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, técnicas especiais de investigação, cooperação internacional e corrupção. Em entrevista à reportagem do Estadão, ele defende a colaboração premiada como instrumento eficaz no cerco aos desvios. E repudia os que rotulam o delator como um traidor. "Aquele que coopera para elucidação de um crime grave, para a libertação de uma vítima de sequestro, para impedir um atentado terrorista, para localizar homicidas ou apreender dinheiro público desviado do erário é um traidor? De quem?"

Para Vladimir Aras, graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (1992) e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (2003), "a corrupção ainda é um problema endêmico no Brasil".

ESTADÃO: A delação premiada é um instrumento que já faz parte da rotina das grandes investigações

PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA VLADIMIR ARAS: A colaboração premiada - este é o nome do instituto - não deve ser empregada rotineiramente. Não é uma panaceia para qualquer tipo de investigação criminal. É um instrumento talhado para o enfrentamento de crimes graves, de preferência mediante articulação com outras técnicas especiais, como a interceptação telefônica e telemática, a escuta ambiental e a ação controlada, e os métodos tradicionais de investigação, a exemplo de buscas e quebras de sigilo.

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ESTADÃO: Que normas amparam o uso da delação? Esse arcabouço é precário? Pode ser aperfeiçoado? Qual a sua sugestão?

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VLADIMIR ARAS: A colaboração premiada foi introduzida no Brasil pela Lei 8.072, de julho de 1990. Nesses 25 anos de existência do instituto seu emprego restringiu-se em geral à investigação de crimes de homicídio, sequestro e narcotráfico. Uma série de leis regula esse meio especial de obtenção de prova, a exemplo da Lei 9.807/1999, de proteção a vítimas, testemunhas e ao réu colaborador. A legislação era esparsa e confusa e não havia clareza quanto ao procedimento a ser adotado pelo Ministério Público, pela Defesa e pelo Judiciário, durante a negociação do acordo. Contudo, com a nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013), a colaboração premiada foi devidamente regulamentada, tendo o Legislativo incorporado à lei o procedimento que foi desenvolvido pelo MPF a partir de 2003, no caso Banestado, no Paraná. Hoje, os ajustes necessários neste tema podem vir da jurisprudência.

ESTADÃO: Já existe algum levantamento sobre em quantos casos a delação foi aplicada?

VLADIMIR ARAS: Não existe, mas é certo que seu uso não se restringe à elucidação o de esquemas de corrupção e de lavagem de dinheiro. A colaboração premiada é muito útil para a investigação de homicídios, estupros, sequestros e outros crimes graves como terrorismo, este ainda não tipificado no Brasil.

ESTADÃO: Ainda há resistência à delação? Por quê?

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VLADIMIR ARAS: É difícil compreender como alguém pode se colocar contra um instrumento que permite ao Ministério Público localizar provas concretas, documentais e periciais, de crimes que ferem gravemente o tecido social, como o homicídio, o estupro, a extorsão, e a atuação de milícias, quadrilhas e outras organizações criminosas. Testemunhas não têm coragem de depor contra essas estruturas enraizadas de poder político, econômico ou contra o poderio de associações criminosas. As críticas vêm em geral de pessoas que procuram vender a ideia - absolutamente errônea -- de que colaboração premiada restringe-se a uma mera "delação verbal". Muitos desses críticos jamais fizeram ou viram um acordo desse tipo. Outros tantos conhecem o instituto só por ouvir dizer. O fato é que não há verdadeira colaboração premiada sem corroboração dos depoimentos do colaborador. A lei proíbe a condenação de quem quer que seja, com base apenas na palavra do colaborador. O uso responsável desse instituto exige que o Ministério Público e a Polícia localizem a apresentem em juízo provas autônomas ou independentes que confirmem as declarações incriminatórias feitas pelo colaborador. A palavra isolada do delator não vale nada. Outra crítica frágil ao instituto centra-se na ideia de que o colaborador é um traidor. É mesmo? Aquele que coopera para elucidação de um crime grave, para a libertação de uma vítima de sequestro, para impedir um atentado terrorista, para localizar homicidas ou apreender dinheiro público desviado do erário é um traidor? De quem? Difícil compreender essa lógica e como alguns comentadores dizem ser ética e moral a conduta que acoberta o crime em detrimento do direito fundamental à vida, à segurança. O homem não deve ter compromisso com o delito. Isso obviamente não se confunde com o direito ao silêncio. Todo acusado tem a garantia de não produzir provas contra si mesmo. Mas nada impede que a lei estabeleça estímulos ou prêmios para aquele que, voluntariamente e com a imprescindível assistência de seu advogado ou defensor, decide colaborar com a Justiça criminal.

ESTADÃO: De modo geral, os delatores se livram da prisão, ao menos do regime fechado. Esse tipo de benefício não provoca indignação na sociedade? Afinal, o delator se valeu dos mesmos desvios e malfeitos que ora aponta e fica livre da sanção penal.

VLADIMIR ARAS: Nem sempre é assim. O estabelecimento do regime prisional depende de critérios fixados no Código Penal. A lei prevê uma série de benefícios, que vão desde a redução de pena até o perdão judicial. Desde a entrada em vigor da Lei 12.850/2013 passou a ser possível a formalização de acordos de imunidade, mediante os quais o Ministério Público deixa de denunciar o colaborador, isto é, em função de uma colaboração extraordinária para a prevenção do delito ou a apuração de um crime grave, o promotor ou o procurador pode deixar de acusar formalmente o colaborador em juízo. O norte é o interesse público. A lógica é a da possibilidade de desvendar crimes insolúveis e alcançar pessoas que, de outro modo, ficariam impunes. A indignação da sociedade vem da impunidade e da leniência com crimes graves. A colaboração premiada, ao contrário, é um instrumento para reduzir a impunidade, localizar criminosos, prevenir crimes, libertar pessoas, salvar vidas e recuperar dinheiro produto da corrupção.

ESTADÃO: O delator pode mentir? A que tipo de consequência ele se submete nesse caso?

VLADIMIR ARAS: Testemunhas mentem. Delatores também podem mentir. A mentira não é um problema da colaboração premiada. É uma questão humana. Porém, no processo penal, isto sempre tem consequências, entre elas a incidência do crime de falso testemunho, previsto no artigo 342 do Código Penal, que tem como sujeitos ativos o perito ou a testemunha. Se o colaborador mente, suas declarações devem ser descartadas. Como disse antes, não é possível embasar uma acusação formal do Ministério Público ou uma sentença condenatória em declarações de colaborador. A corroboração é imprescindível. Diante da Lei 12.850/2013, a mentira do colaborador pode levar à rescisão do acordo, com a perda dos benefícios nele previstos, além de permitir ao Ministério Público processar o delator mentiroso pelo crime de delação caluniosa, previsto no artigo 19 da lei, cuja pena é de 1 a 4 anos de reclusão, e multa: Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

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ESTADÃO: Que dificuldades enfrenta o Ministério Público Federal quando investiga o poder político?

VLADIMIR ARAS: As dificuldades são inerentes ao modelo patrimonialista que impera na Administração Pública brasileira. A cultura do compadrio cria ambiente deletério e pouco republicano, que é explorado por lobistas mal intencionados. Por outro lado, o poder do gestor sobre a máquina pública pode impedir a descoberta de provas ou facilitar sua ocultação ou destruição.

ESTADÃO: O sr. é a favor do foro privilegiado? Por quê?

VLADIMIR ARAS: É preciso restringir o foro especial por prerrogativa de função ao mínimo indispensável. Nessa lista não podem faltar os Chefes dos Três Poderes e o do Ministério Público. Há, porém, um grande contingente de autoridades que hoje gozam do foro especial que poderia perder essa prerrogativa, em nome do princípio da isonomia. O ministro Barroso apresentou uma proposta muito interessante, que dependeria da criação de um juízo especializado de primeiro grau, com sede na capital federal, para julgamento de certas autoridades, com recurso ao STF, a fim de assegurar o duplo grau. Qualquer que seja a solução para esse problema, esta depende de emenda constitucional.

ESTADÃO: O poderio econômico dos alvos de investigações intimida o Ministério Público Federal?

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VLADIMIR ARAS: Qualquer estrutura organizada de poder tem alguma capacidade, maior ou menor, de intimidação. Ameaças, coações, difamações, calúnias e atentados são técnicas corriqueiramente utilizadas por organizações criminosas e por potentados econômicos ou políticos para paralisar investigações criminais. É preciso dar garantias concretas para o trabalho dos órgãos judiciais, policiais e das promotorias. No que diz respeito ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, a intimidação é menos comum pela violência do que pela supressão de direitos e garantias legais imprescindíveis ao livre exercício dessas magistraturas. É preciso que a sociedade fique atenta. Justamente por isso, em 1990, a ONU aprovou suas Regras de Havana sobre a atividade do Ministério Público, onde enuncia diretrizes necessárias para assegurar a independência e a autonomia dessas instituições.

ESTADÃO: Como o chefe do Ministério Público Federal lida com pressões?

VLADIMIR ARAS: A Constituição assegura independência funcional aos membros do Ministério Público, o que inclui o Procurador-Geral da República, cujo mandato é de dois anos. O PGR não pode ser removido do cargo senão mediante proposta da presidência da República, aprovada pela maioria absoluta do Senado. Esse quadro constitucional confere aos integrantes do Ministério Público a independência de uma magistratura.

ESTADÃO: A operação Lava Jato soma inúmeras delações premiadas, incluindo o ex-diretor da Petrobrás, o doleiro e executivos de empreiteiras. O sr. acredita que outras delações podem fortalecer o rol de provas ou as que já foram realizadas são suficientes para formar sua convicção?

VLADIMIR ARAS: Um bom investigador nunca expõe sua estratégia de investigação. Por dois motivos: primeiramente, para não facilitar a destruição ou ocultação de provas; e em segundo lugar, para não expor a imagem e a honra de suspeitos que, ao final, podem ser inocentes.

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ESTADÃO: O País espera o desdobramento mais importante do capítulo da Petrobrás, relativo ao suposto envolvimento de políticos no esquema da Lava Jato, citados por dois delatores. Já há base para o oferecimento de denúncia perante o STF ou apenas para instauração de inquéritos?

VLADIMIR ARAS: Em janeiro, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, montou uma equipe de procuradores e promotores que vão se juntar à força-tarefa do caso Lava Jato, criada em 2014. No tempo oportuno, o Ministério Público Federal anunciará as medidas judiciais adotadas perante o STF.

ESTADÃO: Assusta o senhor o elevado nível de corrupção na Petrobrás?

VLADIMIR ARAS: Infelizmente, a corrupção ainda é um problema endêmico no Brasil. No último levantamento feito pela Transparência Internacional, que divulgou o seu índice de percepção da corrupção, o Brasil não ficou bem no quadro.

ESTADÃO: A presidente Dilma declarou que seu governo não vai mais tolerar a impunidade. Prisão resolve o problema da corrupção no Brasil?

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VLADIMIR ARAS: O combate à corrupção depende muito mais da educação para a cidadania e do controle da sociedade sobre pequenos atos de corrupção do que do direito penal. A redução dos índices de corrupção no País é uma construção coletiva, que demandará o esforço e o compromisso ético de gerações de brasileiros.

ESTADÃO: O confisco de bens de políticos e empresários é uma medida importante?

VLADIMIR ARAS: O confisco ou perdimento de bens que sejam produto ou proveito de atividades criminosas é um efeito automático da condenação criminal. A lei não tolera o enriquecimento ilícito. Essa regra vale para qualquer espécie de crime patrimonial, econômico ou financeiro, inclusive para os delitos de colarinho branco. O crime não pode compensar.

* Vladimir Aras ingressou no Ministério Público Federal em 2003 e atualmente exerce o cargo de procurador Regional da República. Atua na função de secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria Geral da República e compõe o Grupo de Trabalho para auxiliar o PGR na análise dos desdobramentos do caso Lava Jato, em trâmite no Supremo Tribunal Federal. É graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (1992) e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). É professor assistente de Direito Processual Penal da UFBA, professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) e de cursos de pós-gradução em ciências criminais. É também membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Fez cursos sobre o Regime Global Antiterrorismo (DiploFoundation), sobre Reformas Processuais na América Latina (CEJA) e sobre a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Tóquio). Foi promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia de 1993 a 2003 e professor de Direito Internacional e de Processo Penal da Universidade Estadual de Feira de Santana. Tem experiência em Direito Penal, Processual Penal e Direito Internacional, atuando principalmente nos seguintes temas: crime organizado, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, técnicas especiais de investigação, cooperação internacional e corrupção.

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