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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Corrupção: instituições, cultura política e desigualdades

Por Murilo Gaspardo
Atualização:
Murilo Gaspardo. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Uma das explicações mais comuns para os retrocessos democráticos observados no Brasil e em diversas partes do mundo é a percepção pública da corrupção generalizada entre os partidos políticos tradicionais - sua rejeição teria facilitado a eleição de líderes autoritários, como Bolsonaro. A solução para o problema estaria, de acordo com parcela expressiva da opinião pública, em supostos heróis, como o próprio Presidente e o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro que, com sua integridade e poderes extraordinários, salvariam o Brasil desse mal. Das "rachadinhas" à "CPI da pandemia", acumulam-se os exemplos de que tal suposta solução é equivocada. O que temos visto, em verdade, é um processo crescente de destruição do edifício do Estado de Direito, ainda inconcluso, erguido sobre o alicerce da Constituição Federal de 1988, do que o aparelhamento da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República são exemplos eloquentes. Afastada a ideia salvacionista, permeiam o debate político e acadêmico outras três ordens de explicação, com suas respectivas alternativas para o problema: instituições, cultura política e desigualdade.

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Especialmente a partir da Constituição de 1988, foi construído no Brasil um aparato institucional robusto e complexo de prevenção e controle da corrupção, com destaque para o Ministério Público, os Tribunais de Contas, a Controladoria-Geral da União e Leis como a da Transparência e a de Acesso à Informação, além das garantias da independência do Poder Judiciário e da liberdade de imprensa. Se, por um lado, a descoberta de inúmeros casos de corrupção e a persecução de agentes públicos e privados envolvidos demonstram que o sistema funciona e, em certa medida, está amadurecendo - ao contrário do que ocorria na ditadura civil-militar iniciada com o Golpe de 1964 -, por outro, isso também evidencia que as instituições não são suficientes para impedir que exista corrupção nos níveis percebidos no Brasil[1].

Isso remete à discussão sobre a cultura política brasileira, sua formação a partir da colonização portuguesa, e a persistência do patrimonialismo e do clientelismo, mesmo sob a vigência dos princípios republicanos e democráticos da Constituição de 1988, como a legalidade, a impessoalidade, a publicidade e a moralidade na Administração Pública. Nesse sentido, é bastante ilustrativa a existência do "Centrão" como fiador da estabilidade de todos os Presidentes que não caíram pelo impeachment (inclusive Bolsonaro até o momento) e, simultaneamente, protagonista de diversos escândalos de corrupção: "anões do orçamento", "mensalão", "petrolão" e "orçamento secreto". Mais do que uma patologia, o "Centrão" parece ser uma característica inata da cultura política brasileira. O grande risco dessa análise reside no determinismo e no fatalismo, como se a corrupção estivesse de tal forma enraizada que, por melhor que sejam as instituições, elas não seriam capazes de impedir sua persistência, corroendo a democracia e as possibilidades de desenvolvimento socioeconômico do país. Outro risco seria uma aposta, de certa forma ingênua, no poder transformador da educação para a integridade e a honestidade. Evidentemente, a educação ética é importante, devendo ocorrer desde a mais tenra idade e permear toda a vida dos cidadãos, mas seria suficiente para promover tão grande transformação na cultura política brasileira?

Nossa hipótese é que as instituições e a educação importam, mas a chave fundamental para compreensão do problema da corrupção no Brasil e, consequentemente, das alternativas para superá-lo ou mitigá-lo encontra-se nas desigualdades. Não é o caso de nos rendermos ao fatalismo, mas as reformas institucionais e o tipo de educação para a cidadania de que o Brasil precisa devem ser orientados por esse diagnóstico - a perspectiva fundada na ética individual é insuficiente e, muitas vezes, contraproducente. Não precisamos de reformas que fragilizem as garantias do contraditório e da ampla defesa, mas que eliminem privilégios disfarçados de direitos, tanto no âmbito da burocracia estatal - em especial dos militares e de funcionários do sistema de Justiça - como de agentes privados.

Nenhuma instituição de controle será capaz combater a corrupção a contento enquanto existirem, na expressão de Marcelo Neves (1994), subcidsubcidadania e sobrecidadadania, ou, mais concretamente, uma diminuta elite capaz de torcer o sistema político a seu favor (financiamento eleitoral lícito ou ilícito, lobby, formação da opinião pública) - emprego aqui a ideia de corrupção não apenas no sentido estrito da tipificação penal, mas de toda forma de "corrupção da república" - enquanto houver 14,8 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados, 19 milhões de pessoas em completa insegurança alimentar e filas a espera de pedaços de ossos com retalhos de carne. O papel da educação para a integridade, por sua vez, deverá ser o oposto da demonização moralista da política e da exaltação de falsos heróis, ou seja, deverá se voltar para a formação da consciência crítica da cidadania para a compreensão das causas estruturais da corrupção no Brasil.

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[1] Cf. Transparência Internacional. Disponível em: Índice de Percepção da Corrupção | Transparência Internacional (transparenciainternacional.org.br) >. Acesso em 27 jul. 2021.

*Murilo Gaspardo, 38 anos, é diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca - SP. Livre-docente em Teoria do Estado pela Unesp, é Doutor, Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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