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Corrupção de segunda ordem?

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Por André Carlos Busanelli de Aquino
Atualização:
André Carlos Busanelli de Aquino. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Quando se fala em corrupção, talvez imagens como malas de dinheiro são as primeiras a virem à mente. Mas corrupção assume diversas formas e os benefícios privados extraídos de recursos públicos de forma imoral são diversos.

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Recentemente um estudo publicado na revista Critical Perspectives on Accounting mostrou como alguns Tribunais de Contas no Brasil, em algum momento, se deixam envolver em barganhas políticas, reduzindo o efeito da auditoria de governos (https://doi.org/10.1016/j.cpa.2021.102384). A chamada 'justiça seletiva' vem de julgamentos com pesos e medidas distintos para proteger grupos políticos, sem chamar atenção pública. Isso é possível pois conselheiros desenvolvem regras e procedimentos internos que legitimam ações que silenciam seus próprios auditores. Por exemplo, sobrecarregam auditores com tarefas que não contribuem para identificação de irregularidades, e sobretudo nutrem uma cultura organizacional baseada em reciprocidade e ameaça velada. Assim, evitam desgastar relatores 'dourando a pílula' do desempenho fiscais de governos ou levar a plenário a tarefa de reverter a opinião dos auditores.

Esse tipo de ação é conhecido como corrupção de segunda ordem. Na corrupção de primeira ordem, pessoas ou grupos usam e abusam de seu poder para quebrar regras e leis visando ganhos privados. Já na corrupção de segunda ordem, atores em certas posições e cargos mudam as regras para facilitar, esconder, disfarçar ou mesmo legalizar ganhos privados (que até então poderiam ser ilegais).

Claro que esta é uma realidade de alguns Tribunais, nem todos operam dessa forma e muitos podem já estar corrigindo essa prática. Mas o ponto de interesse aqui é como as normas internas, processos e rotinas de organizações do setor público acabem sendo distorcidos para cumprir outros fins e acabam 'institucionalizando' uma prática que não é socialmente desejável.

Com a mudança de regras, as ações que levam aos ganhos privados passam a ser respaldadas e legitimadas pela nova regra alterada. Afinal, como contestar algo que está de acordo com procedimentos aprovados? Algumas práticas podem passar desapercebidas, e se detectadas não são enquadradas como ilegais. Mas, mesmo assim, induzem práticas indesejadas se o propósito da regra não está alinhado com interesses públicos ou se a regra é distorcida. Ao olhar sob essa perspectiva, mudanças normativas podem ser 'porteiras abertas para a boiada passar', e até configurar corrupção de segunda ordem.

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Um caso curioso que merece maior atenção é como a Emenda do Relator (RP9) vem sendo aplicada pelo Congresso Nacional. A Emenda de Relator é um instrumento interno do Congresso criada pela Resolução n. 01, de 2006 do Congresso Nacional. Originalmente seria um aperfeiçoamento ao processo orçamentário, como dito pela Nota Técnica nº 63/2021 da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, "tradicionalmente, [as emendas do relator] são utilizadas com a finalidade de corrigir erros ou omissões de ordem técnica do projeto de lei orçamentária, ou seja, um instrumento colocado à disposição dos relatores para que possam cumprir a função de organizar e sistematizar a peça orçamentária.". Contudo, observando a prática atual e os montantes envolvidos, pode-se questionar se o uso da RP9 não teria sofrido uma mutação, uma disfunção no processo orçamentário. Apesar de alegações de interferência nas competências do Congresso Nacional, parece que o uso das Emendas do Relator não está mais ligado à simples correção de erros ou omissões do orçamento.

Precisaríamos questionar como a RP9 realmente opera (e não como deveria operar), como alguns grupos são beneficiados, a equidade no processo democrático-representativo, e se o benefício privado é legítimo. O benefício privado, segundo denúncias, parece ser capital político acumulado ao direcionar obras, bens e recursos para suas bases eleitorais, por vezes favorecendo pessoas ou grupos específicos. Segundo denúncias, os próprios congressistas indicariam ao Executivo pessoas ou grupos que deveriam ser beneficiados. E a liberação do empenho pelo Executivo das despesas dependeria de votos do parlamentar a favor do governo. A se confirmar, a Emenda do Relator deixou de ser um instrumento técnico, para acomodar uma prática de favorecimento com critérios pouco transparentes.

E aqui voltamos ao mesmo ponto inicial do estudo sobre Tribunais de Contas. A mutação das regras gerando benefícios imorais se beneficia da opacidade, do uso de reciprocidade de pessoas beneficiadas pelo sistema (fisiologismo). A defesa de qualquer prática no setor público como algo tecnicamente correto e legal não garante que seja de interesse público. No caso das Emendas do Relator, não basta a transparência sobre o parlamentar patrocinador da emenda. É relevante discutir o montante que deixa de ser aplicado em políticas públicas desenhadas em um debate democrático que passa pelas diversas comissões parlamentares, daquele outro montante que passou a ser de alocação discricionária motivada por barganha política. Essa também é uma distorção do sistema.

Independente das razões para o aumento do montante das Emendas do Relator (que devem ser debatidas), o uso feito do instrumento abre "oportunidade" - um dos três elementos presentes no triângulo da fraude - para possíveis irregularidades com uso de recurso público na busca de perpetuação em mandatos políticos. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, os esclarecimentos das razões dessas práticas e as soluções que serão dadas para correção dessas distorções.

*André Carlos Busanelli de Aquino é professor titular da Universidade de São Paulo,  doutor em Controladoria, pesquisa nas áreas de accountability, governança pública e estudos organizacionais

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Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

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