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Coronavírus: um recorte racial

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Por Irapuã Santana
Atualização:
Irapuã Santana. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Estamos vivendo tempos sombrios com a pandemia de coronavírus. Mas é forçoso reconhecer que uns sofrem mais que outros. Quando se fala que uma das medidas de precaução é lavar bem as mãos com água e sabão, o que parece ser simples, num primeiro momento, torna-se um verdadeiro desafio para 35 milhões de pessoas no Brasil, que não têm acesso à água tratada. Além disso, metade dos brasileiros não tem acesso a esgoto, o que demonstra uma barreira quase intransponível de meios para se precaver contra essa terrível doença.

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Em uma simples reflexão, fica fácil saber onde reside e quem forma essa parcela tão significativa da população: são os mais pobres das zonas periféricas de todo país.

Historicamente, o Estado não olha para essas pessoas, que precisam se virar para sobreviver e, portanto, formam a maior parcela de empreendedores e de trabalhadores informais. Depender apenas de si para custear o seu sustento, sem uma rede de apoio por trás, faz com que essas pessoas fiquem expostas, pelo fato de ter que seguir trabalhando.

As pessoas mais pobres precisam utilizar o transporte público, assim como ocupam os postos de trabalho ditos essenciais, quando empregados.

Sem dinheiro, não há possibilidade de manutenção de uma alimentação balanceada, que fortaleça a imunidade. Se já existe uma dificuldade de testagem para pessoas com recursos, imagine, caro leitor, como está a situação de quem está nas camadas mais baixas de renda da sociedade.

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Daí a preocupação extremamente legítima com o período que se aproxima da chegada do coronavírus nas comunidades periféricas de todo o país, onde famílias grandes dividem pequenos cômodos, em casas amontoadas umas nas outras.

Então, em um panorama de crise mundial, onde fica dificílimo se prevenir e adquirir seu sustento, é possível ficar pior? Infelizmente, sim.

O exemplo dos Estados Unidos tem mostrado que, apesar de ser uma parcela pequena da sociedade, os afro-americanos têm sofrido uma incidência completamente desproporcional de diagnósticos e de mortes pela doença.

Em Louisiana, cerca de 70% das pessoas que morreram são afro-americanas, embora apenas 1/3 da população do estado seja negra. Em torno de Milwaukee, onde 27% dos residentes são negros, os afro-americanos que testam em número positivo superam os brancos dois para um. Por sua vez, Chicago tem pouco menos de um terço do afro-americano, mas os negros correspondem a 72% das mortes relacionadas ao vírus.

Todo panorama relatado demonstra como as questões socioeconômicas influenciam diretamente na exposição ao coronavírus. Mas como eu disse anteriormente, o quadro é muito mais complicado do que esse.

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Voltando ao Brasil, segundo o Ministério da Saúde, apesar de corresponder a apenas 23,1% das internações por covid-19, as mortes dos negros correspondem a 32,8% do total.

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A literatura médica aponta que pessoas negras têm predisposições a desenvolver ou serem portadores de doenças como diabetes, hipertensão, doenças do coração, que, por consequência, são condições para se classificar como grupo de risco.

Daí a necessidade de ir além para poder compreender o que pode vir em nossa realidade.

O IBGE aponta que, enquanto 15,4% dos brancos do país estão na faixa da pobreza, 32,9% dos negros compõem a parcela de brasileiros que vivem com até US$ 5,50 por dia. Já na linha da extrema pobreza, com rendimento de até US$ 1,90 por dia, estão 3,6% dos bancos e 8,8% dos pretos e pardos.

Ser deixado à margem da sociedade faz com que não se consiga atingir níveis de nutrição ideais, o que gera alto índice de diabetes entre negros, além das doenças do coração e hipertensão, que, por sinal, é potencializado pelo fato de lidar diariamente com o racismo.

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Assim, temos que o racismo estrutural, construído em mais de cinco séculos de história, gera consequências nefastas na ordem de saúde, encontrando o aumento exponencial de risco de óbito de grande parcela da população negra.

O Dr. Drauzio Varella revela que as longas viagens de navio no período escravocrata, com infraestrutura precária, água e alimentação restritas e expostos a doenças que provocam diarreia, muitos negros escravizados morriam de desidratação. Assim, somente sobreviviam aqueles que tinham maior capacidade de reter sal e, consequentemente, água. O problema é que exatamente a característica que lhes salvou a vida à época, agora aumenta o risco de pressão alta.

O fato de existir um mito de possuir maior resistência à dor gera o chamado racismo institucional na área da saúde, onde negros são mandados para casa sem o devido tratamento para sofrer em casa, no silêncio, ou na administração mais baixa de doses de medicamentos.

É preciso, portanto, ter um olhar mais atento para a situação que se desenha no Brasil, enquanto país de maioria negra, por tudo que foi dito. O futuro que se aproxima não parece acolhedor para o pobre e para o negro.

O Brasil deu um excelente passo ao conceder um auxílio emergencial para os mais necessitados, mas é preciso ir além, é necessário um esforço a mais para abarcar as peculiaridades da saúde do povo negro, que compõe 54% da população nacional.

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Todas as medidas de combate à questão socioeconômica podem ser consideradas de médio e longo prazo, com exceção do auxílio emergencial. No entanto, é possível expedir normas de tratamento específicas para as pessoas negras, gerando uma discriminação positiva na saúde, considerando um potencial grupo de risco, com a adequação dos tratamentos condizentes com o que a situação de risco exige.

Não adianta dizer que todos são iguais, se a vida, em virtude de uma história racista, desnivelou grande parte da sociedade e não podemos fechar os olhos para essa situação que se apresenta.

Toda exposição ao vírus deve ser evitada, mas é preciso identificar quais são os grupos mais sensíveis. É necessário reconhecer que a população negra está historicamente largada à própria sorte e que isso a torna mais vulnerável em tempos de pandemia.

Não podemos esperar pelo pior. É preciso agir já.

*Irapuã Santana é doutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), consultor da Educafro e do Livres, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC), apresentador do Programa "Explicando Direito" da Rádio Justiça e procurador do Município de Mauá/SP

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