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Coronavírus, fundo eleitoral e a judicialização inapropriada

Por Alexandre Fidalgo e Ana Paula Fuliaro
Atualização:
Alexandre Fidalgo e Ana Paula Fuliaro. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Os reflexos do combate ao coronavírus já começaram a ser sentidos nas eleições municipais que ocorrerão este ano. Surgiram propostas desde adiamento do pleito municipal até seu cancelamento e unificação com as eleições para presidente, governadores, senadores e deputados do ano de 2022.

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Mais recentemente, a Justiça Federal do Distrito Federal determinou o bloqueio do Fundo Partidário (fundo permanente de financiamento da vida partidária, empregado também no momento da disputa eleitoral) e do Fundo Eleitoral (fundo destinado exclusivamente ao financiamento do momento eleitoral) e facultou o uso desses recursos, pelo presidente da República, para o combate à covid-19. Muito embora tal decisão tenha sido suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o debate sobre o tema torna-se interessante, posto que de grande apelo da sociedade, em face de uma crise sanitária mundial, com resultados devastadores para vidas humanas. Mas há outros valores constitucionais envolvidos na discussão, que necessitam ser preservados para o bem do próprio Estado, além de existirem alternativas públicas para atender todas essas demandas sociais.

Sob a ótica da ponderação ou do sopesamento, deve-se buscar a máxima efetividade dos mandamentos constitucionais. No caso em análise, de um lado, evidentemente, há o valor da saúde pública e o direito à vida, que demandam inúmeras providências para serem assegurados em tempos de pandemia. Dentre essas providências, ainda que não exclusivamente, está a destinação de recursos públicos para o enfrentamento da crise sanitária.

De outro lado, há valor de igual importância, a democracia, que requer o emprego de recursos financeiros para sua implementação, destacadamente de recursos públicos, dado que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade das doações de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais.

Delimitado esse cenário, é certo que há aparente conflito entre tais valores. O combate à pandemia demanda recursos financeiros públicos que podem ser encontrados no montante destinado ao financiamento da política, consubstanciados no Fundo Partidário e no Fundo Especial de Financiamento de Campanha - FEFC.

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O conflito, contudo, é aparente, uma vez que o princípio da unicidade da Constituição impede que esse tipo de escolha nulifique a democracia em favor da saúde e da vida, ao mesmo tempo em que esses últimos valores não podem ser ignorados para que se implemente o primeiro. Vale dizer: a Constituição Federal escolheu, para a fundação do Estado Brasileiro, que todos esses princípios coexistam, impondo ou a impor ao hermeneuta o papel de contemporizá-los no momento atual.

Nessa linha de raciocínio, é possível, dentro da ponderação de valores, que se limite o acesso a parte dos recursos destinados ao financiamento da democracia para o combate à epidemia do coronavírus. A definição da parte que deve ser limitada certamente cabe aos entes públicos, do Executivo e do Legislativo, que são capazes de articular todos os dados que envolvem o problema, considerar a vontade do povo que fundamenta seus mandatos e os ditames constitucionais.

É possível ponderar a limitação de acesso ao FEFC, mantendo-se o Fundo Partidário, o que atende também à premente opinião popular contrária a tal Fundo. Mas não há regra jurídica a ser aplicada para indicar o valor exato a ser suspenso no caso concreto. O que afronta a Constituição é impedir o exercício da vida político-partidária, fundamento da democracia brasileira, extinguindo-a por inanição, sob o pretexto do combate à pandemia.

A decisão mencionada foi lançada no bojo de uma ação popular, remédio constitucional consagrado para a proteção de direitos coletivos ou difusos. Note-se que o artigo 5º, inciso LXXIII, do texto constitucional permite o manejo dessa medida processual com a finalidade de anular do Poder Público ato que seja lesivo ao patrimônio público ou à moralidade administrativa.

E qual é o ato lesivo debatido? Certamente não o é o diploma legislativo, que, desde há muito, financia a democracia. Foge à nossa compreensão como um ato público não lesivo adquire tal status em razão de um apelo sentimental e social, ainda que absolutamente relevante e compreensivo. Ora, a lesividade existe ou inexiste. O conceito jurídico não pode transitar ao sabor dos fatos -- mesmo que de inquestionável importância.

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Ainda que se tentasse considerar que a lesão residiria na omissão do Legislativo ou do Executivo na providência de alterar parte da destinação dos recursos eleitorais para o combate à pandemia, igualmente a medida seria inadequada. Não existe omissão desses Poderes na adoção de providências para a superação da crise. A propósito, sem qualquer pretensão de julgá-las neste trabalho, a produção normativa e a adoção de políticas públicas evidenciam que há ações políticas ainda a serem tomadas.

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A dificuldade de adequação da medida judicial ao caso que se pretende tratar fica cristalina na própria parte final da decisão, que determina o bloqueio dos valores dos fundos eleitorais e faculta, ao Poder Executivo, o emprego dos recursos financeiros para o combate à pandemia. Faculta, porque nada além disso poderia fazer. Faculta, dado que a própria articulação entre Legislativo e Executivo já poderia chegar ao resultado pretendido pela decisão, caso se julgue como mais adequado. Faculta, porque, de fato, não é da alçada do Poder Judiciário determinar a forma pela qual o enfrentamento da crise acontecerá, escolhendo os recursos que serão mobilizados para tanto, a não ser que sejam empregados em desacordo com a Constituição e a lei, o que não acontece no contexto ora analisado. Faculta, por saber, apesar da decisão, que o momento caótico demanda que se mantenha o apreço pelas instituições, sob pena de não ser possível o exercício de todas as funções públicas necessárias -- e destinadas a cada Poder a partir da sua vocação e da sua legitimidade -- para que se salve o Estado Brasileiro.

*Alexandre Fidalgo, doutorando em Direito pela USP; mestre em Direito pela PUCSP; sócio titular do escritório Fidalgo Advogados; Ana Paula Fuliaro, doutora em Direito pela USP; professora da Universidade Católica de Santos; sócia do escritório Fidalgo Advogados

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