Aurélio Marchini*
28 de maio de 2020 | 05h55
Aurélio Marchini. FOTO: DIVULGAÇÃO
Nesta quinta-feira (28 de maio), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) decidirá em sessão extraordinária o primeiro acordo de cooperação entre concorrentes celebrado para enfrentar as dificuldades causadas pela pandemia da covid-19. À semelhança de outras autoridades de defesa da concorrência pelo mundo[1]–[2]–[3], o Cade acertadamente confirma seu comprometimento com a análise prioritária dessas operações e tem divulgado critérios sob os quais tais acordos deverão ser considerados benéficos e, assim, aprovados pelo órgão.
Os critérios de análise explicitados pelo Cade até o momento são bastante coerentes com os usualmente empregados no controle de atos de concentração. Em primeiro lugar, deve ser demonstrado que a operação é necessária para lidar com os impactos da pandemia sobre as atividades envolvidas no acordo. Idealmente, as partes devem comprovar que, no seu objeto e duração, a operação será também o meio menos restritivo à concorrência capaz de atingir os resultados esperados. Serão igualmente averiguados os benefícios econômicos prováveis e sua aptidão para compensar a possível redução da concorrência nos mercados afetados, nos moldes da usual regra da razão empregada pelo Cade no controle prévio de estruturas.
A presteza de análise é indispensável para que tais operações possam ser implementadas rapidamente e atingir seus objetivos tempestivamente. Já a transparência quanto aos critérios de análise conferirá preciosa previsibilidade sobre os parâmetros admitidos pela autoridade para esses acordos. A combinação desses fatores compõe resposta importante e adequada do Cade frente aos desafios da pandemia.
Na contramão das melhores práticas adotadas pelo Cade, o Projeto de Lei nº 1.179/2020[4] (PL), em vias de ser sancionado, prevê a isenção de acordos de cooperação entre concorrentes (na forma de contrato associativo, consórcio ou joint venture) da obrigatoriedade de aprovação prévia pelo Cade. Segundo o PL, os acordos celebrados e com vigência durante o atual estado de calamidade pública não serão sujeitos ao controle preventivo pelo Cade. Trata-se de norma inadequada, com incentivos indesejáveis a práticas anticoncorrenciais, além de portadora de insegurança jurídica.
O PL parte de uma premissa equivocada de que o controle de concentrações econômicas pelo Cade seria entrave indesejado para soluções voltadas a enfrentar os efeitos negativos da presente crise. Desde logo, essa noção deve ser repudiada: a defesa da concorrência não é um escrúpulo ocioso, mas sim uma proteção da sociedade contra o abuso do poder econômico. Ademais, a prioridade imprimida pelo Cade no exame de tais operações esvazia de qualquer sentido essa isenção, pois garante que operações necessárias e comprovadamente benéficas possam ser implementadas rapidamente, sob a chancela do Conselho quanto a licitude da cooperação.
Além disso, o PL parece desconsiderar que, atualmente, apenas parcela muito restrita das cooperações entre concorrentes dependem de autorização prévia do Cade. Nesse sentido, são de controle prévio obrigatório somente os acordos envolvendo a exploração conjunta por concorrentes de atividade econômica por prazo igual ou superior a dois anos, na forma do artigo 2º da Resolução Cade nº 17/2016. Ou seja, acordos emergenciais e de curta duração já estão fora do controle preventivo exercido pelo Conselho.
A isenção em questão é, de resto, parcial. O PL explicitamente mantém a possibilidade de análise posterior pelo Cade dos acordos que não forem necessários ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia da covid-19, potencialmente em processos de caráter repressivo, o que ocasiona insegurança jurídica em relação às parcerias legítimas que o PL pretende facilitar.
Portanto, a isenção prevista no PL não é só desnecessária, como também induz a evasão do controle prévio pelo Cade de acordos que, posteriormente, podem vir a ser penalizados como infração à ordem econômica.
Em realidade, o papel do Cade na promoção e defesa da concorrência é essencial para o bem-estar econômico da sociedade especialmente durante a pandemia. Iniciativas como o comentado PL criam uma aparência de tolerância com acordos restritivos da concorrência de todo indesejável, impertinente e portadora de incerteza em matéria da mais alta relevância. Não é por outra razão que integrantes do Cade têm amplamente encorajado as empresas a consultarem o órgão antes de implementarem acordos para não se verem no futuro investigadas e punidas.
*Aurélio Marchini, sócio de Marchini, Botelho e Caselta Advogados
[1] A Comissão Européia (CE) divulgou nota sobre o tema:
[2] A Ferderal Trade Comission (FTC) e o Department of Justice (DOJ) emitiram também nota conjunta sobre o assunto: https://www.justice.gov/atr/joint-antitrust-statement-regarding-covid-19/
[3] A International Competition Network (ICN) igualmente se pronunciou sobre a questão: https://www.internationalcompetitionnetwork.org/featured/statement-competition-and-covid19/
[4] O PL dispõe mais amplamente sobre Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).
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