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Controle judicial de atos da Anvisa: o caso do embate sobre as vacinas

Por André Portugal
Atualização:
André Portugal. FOTO: DIVULGAÇÃO  

Dentre as vítimas da relativamente recente polarização da sociedade brasileira, e dos embates políticos que ela tem proporcionado, está a pretensão de autonomia científica do Direito. Foi em algum momento dos anos recentes que a apologia, mesmo que cínica, de que o direito ostentasse condição de autonomia, com suas próprias regras, procedimentos e razões, parece ter finalmente se perdido. Em seu lugar, ergueram-se tipos diversos de argumentação, lastreados em critérios que guardavam pouca ou nenhuma relação com aquelas condições que fazem de uma regra jurídica o que ela deve ser: norma jurídica, com texto próprio, limites semânticos por vezes muito claros e a ser interpretada de acordo com seu contexto ou jogo de linguagem específico, com a função de promover segurança aos cidadãos aos quais ela se aplica. Uma das nem tão novas estirpes de argumentação e interpretação a que me refiro está no fenômeno da politização do direito, que consiste, grosso modo, em moldar e interpretar o direito à imagem e semelhança de projetos ou objetivos de natureza política, identificados com determinados grupos, ideologias ou pautas específicas.

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A primeira vez em que me deparei com esse fenômeno foi ainda no ano de 2012, quando um debate de natureza exclusivamente processual, a saber, o cabimento ou não da oposição de embargos infringentes, um recurso então previsto em nosso direito, contra decisão majoritária do STF na Ação Penal 470 (Mensalão), dividiu opiniões precisamente conforme a orientação política de quem as professava: quem era a favor do Partido dos Trabalhadores costumava defender o cabimento do recurso; quem repudiava o partido, por outro lado, frequentemente chegava à conclusão oposta. De científico, pouco ou nada se via nesse debate.

Nos últimos anos, sobraram exemplos de casos, julgados pela nossa Suprema Corte, em que a retórica política, e não a argumentação lastreada em razões propriamente jurídicas, isto é, que tomavam o Direito como objeto genuíno de discurso, com os seus limites textuais, contextuais e linguísticos, prevaleceu.

Agora, o Supremo Tribunal Federal terá, no anacrônico embate sobre as duas vacinas cuja aprovação para uso emergencial foi requerida à ANVISA, nova oportunidade para afirmar a autonomia do Direito ou, por outro lado, para confirmar a tendência de queda do valor das razões propriamente jurídicas em casos no tribunal.

É que a REDE ajuizou, em 11/01/2021, ação judicial pleiteando que o Min. Ricardo Lewandowski obrigue, em 72h, a ANVISA a autorizar o uso emergencial da Coronavac, vacina produzida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan e convencionalmente vinculada ao governador de São Paulo, João Doria. A ANVISA não indeferiu o pedido, mas apontou, como se sabe, que documentos essenciais para a comprovação da eficácia e os efeitos colaterais da vacina deixaram de ser entregues. Por isso, determinou ao Instituto Butantan que acrescentasse tais documentos ao pedido. O Butantan comprometeu-se a anexá-los com brevidade.

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Os argumentos da REDE, por sua vez, partiram da premissa de que (i) deveria haver isonomia entre as duas requerentes de aprovação do uso emergencial, já que o pedido da Fiocruz, para a vacina por ela produzida, em parceria com a Universidade de Oxford, foi aprovado; e (ii) a determinação da ANVISA, para que o Butantan juntasse novos documentos, estaria sustentada em razões puramente políticas e, mais do que isso, pessoais, que serviriam ao interesse político do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em seu embate contra o governador João Doria (PSDB).

Em nenhum momento, no entanto, a REDE demonstrou, com o mínimo de objetividade, que as exigências documentais da ANVISA teriam sido efetivamente descabidas, ou que não teriam sido feitas ou que, tendo sido feitas, tivessem sido descumpridas também pela Fiocruz. Dois comentários devem ser feitos a esse respeito.

Primeiro, a argumentação é, a um só tempo, política e puramente abstrata, hipotética, conjectural. E simplesmente não há como se debater isonomia a não ser por meio de uma comparação concreta entre as igualdades e diferenças dos objetos dessa comparação.

Segundo, por se tratar de ato administrativo de agência reguladora em matéria de saúde, dotada de capacidade técnica para avaliações complexas, é correto afirmar que estamos em um âmbito em que o direito, como sistema, deve abrir-se - e efetivamente se abre - ao que a ciência, também como sistema, tem a dizer. Os cientistas e técnicos, mais do que os juízes; a ciência, mais do o direito, têm a legitimidade institucional para afirmar se os requisitos para a aprovação do uso emergencial de uma vacina estão preenchidos ou não. Convém presumir, nestes casos, que o Direito é sistema de racionalidade limitada, incapaz de oferecer resposta a todos os problemas que se lhe apresentam, e que ele não pode sufocar a racionalidade dos outros sistemas sociais, como a ciência.

Naturalmente, isso não quer dizer que nenhum, nem que a maioria dos atos administrativos editados no âmbito de agências reguladoras não possa ou não deva ser objeto de controle judicial. Significa, antes, que esse controle deve ser cuidadoso e observar o jogo de linguagem e o contexto em que cada ato administrativo se insere e, assim, o tipo de razão de que se poderá se valer para exercer ou não exercer o controle. O controle deve acontecer quando houver violação do Direito, em síntese.

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Caso se trate de interpretação de texto normativo com conceitos que se vinculem muito mais a outros sistemas, que não propriamente o direito, exige-se muito mais cautela do controlador. É o caso, por exemplo, do conceito de "evidência científica", que demandará a compreensão da ciência para ser adequadamente interpretado. Se, por outro lado, o termo e o ato a serem interpretados integrarem mesmo o jogo de linguagem do direito, há mais espaço para o controle judicial. Tome-se como exemplo o conceito de "razoável duração do processo".

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Neste caso, parâmetro importante para se aferir a legitimidade ou não de controle judicial do ato praticado pela ANVISA, postergando a aprovação do pedido do Butantan, é o guia com instruções para a solicitação de uso emergencial de vacinas contra a Covid-19, publicado, via Resolução de Diretoria Colegiada (RDC), pela ANVISA. Trata-se de documento por meio do qual a ANVISA estabeleceu as regras e o procedimento a serem obedecidos para o deferimento de pedidos nesses termos. Em matéria de controle, há, aqui, duas possibilidades: (i) o procedimento previsto guia da ANVISA, no todo ou em parte, pode, eventualmente, extrapolar as prerrogativas da agência, o que seria ilegal e passível de controle e (ii) pode ter havido, no ato administrativo, desrespeito às regras prescritas em seu próprio guia, o que também violaria direito de particulares e deveria ensejar o controle judicial. Eis o tipo de razões que precisaria ser apresentado em matéria de ação judicial que visasse ao controle do ato administrativo em questão. E o tipo de razões que deve ser utilizado por decisões judiciais que definam pelo controle ou pela deferência neste caso.

Note-se, todavia, que o que a REDE pede do Supremo Tribunal Federal é que este presuma, em liminar, que as razões indicadas pela ANVISA para postergar a aprovação do pedido do Butantan são intrinsecamente personalistas, chegando, eventualmente, a configurar até mesmo hipótese de improbidade administrativa. A despeito disso, a REDE não se desincumbiu dos ônus probatórios que constituem o processo judicial e, nesse sentido, o próprio Direito como sistema que opera na prática, com suas regras, procedimentos e formas específicas de argumentação. Pede-se, em suma, que o STF decida com razões puramente políticas, porque, afinal, a causa da vacinação é inegavelmente nobre, urgente e não pode ser postergada. Mais uma vez, a pauta política moldaria o direito, que seria tolhido de uma necessária caminhada com suas próprias pernas.

A experiência demonstra que nem sempre, e nem mesmo na maioria das vezes, uma postura expansiva do Judiciário significará o resgate do Direito, em pretensa ação contra a sua captura pela política. Via de regra, será o caso de pura e simples politização da Justiça. E o caso do embate sobre vacinas não foge à regra: ao menos nesse momento, é precisamente na postura cautelosa por parte do Judiciário que residirá a preservação do sistema jurídico.

*André Portugal é advogado, sócio do Klein Portugal Advogados Associados, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor de Teoria da Decisão Judicial no programa Law Experience do FAE Centro Universitário. Membro-fundador do IDASAN (Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro)

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