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Constituição! Ora, a Constituição

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Por Alexandre Fidalgo
Atualização:
Alexandre Fidalgo. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Parafraseando Getúlio Vargas --Lei! Ora, a lei --, o título deste artigo sintetiza o momento pelo qual perpassa a sociedade civil brasileira.

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A cada dia aumenta a lista das já incontáveis violações praticadas pelo presidente da República ao texto constitucional. O desrespeito à orientação da política de saúde adotada pelo seu próprio Ministério da Saúde, num ato absolutamente ilógico de causar ou incentivar aglomerações é algo recorrente e grave.

Grave também a insistência da não apresentação de um simples exame médico, sob a estapafúrdia alegação de que se trata de direito individual à intimidade, esquecendo-se de que, ao ocupar voluntariamente a cadeira, o presidente despe-se da proteção quase que absoluta do direito que protege a intimidade e a privacidade do indivíduo. Precisou da judicialização dessa questão chegar ao Supremo Tribunal Federal para o presidente apresentar aludido exame, ainda assim fazendo sob legítimas dúvidas sobre os papeis que apresentou.

Outro exemplo consiste nas demonstrações de apoio a manifestações contrárias à democracia. Evidente que se trata de manifestações ilegais, que advogam a ruptura da opção democrática feita pela Constituição de 1988. E essas manifestações de ruptura do Estado, que receberam apoio do presidente, tendo sido utilizado, inclusive, equipamentos da administração pública para apoio, não foram atos isolados.

Igualmente é inconcebível que um presidente da República de um país democrático busque a todo instante cercear a atividade de imprensa, seja mediante atos destemperados de violência e de verdadeiro assédio a profissionais jornalistas, seja, ainda, mediante ameaça de cassação das ainda absurdas outorgas necessárias para a atividade de radiodifusão no Brasil. O argumento utilizado para esses verdadeiros atos censórios limita-se no fato de que a narrativa contada pela imprensa não é exatamente a do gosto do presidente.

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Vale aqui lembrar, por mais evidente, que a imprensa, a liberdade de expressão, a crítica, ainda que ácida, são direitos fundamentais e imanentes de qualquer país democrático. Qualquer espécie de embaralhamento da atividade jornalística constitui ato contrário à democracia. Como Millôr Fernandes dizia, na democracia, a imprensa será sempre oposição.

Outro ato contrário à Constituição Federal é a investida que o representante do Estado faz contra as instituições democráticas, estimulando e difundindo a ideia de que o Poder Judiciário e o Poder Legislativo devem ter suas atividades cerceadas e até mesmo serem fechados, em manifesta ruptura do sistema de pesos e contrapesos de Montesquieu - antes pensado por Locke.

Sobre esse aspecto de ruptura das instituições, as mais recentes revelações dão conta de que o presidente da República Federativa do Brasil trata as coisas públicas como se particulares fossem. Instituições que são do Estado passam a ser do governo; poderes que compõe o Estado de Direito devem estar submetidos ao gosto do Executivo; reuniões ministeriais estão a permitir arroubos de autoritarismo absolutista, como determinar prisão de ministros do Poder Judiciário, governadores e prefeitos, como se apurou até o momento.

Outro ponto de destaque das inúmeras afrontas à democracia está, a nosso sentir, no aparelhamento das funções ministeriais por oficiais das Forças Armadas. As Forças Armadas são instituições que possuem a mais alta credibilidade para a sociedade brasileira, exatamente em razão de ter se afastado do cenário político desde o momento que entregou o poder. O retorno do envolvimento de militares no cenário político desperta sentimentos esquecidos.

A Constituição é um documento político decorrente de uma manifestação de força social. Além de juridicamente representar, como ensina Kelsen, um conjunto de regras concernentes às formas de Estado e de governo, ao modo de aquisição e exercício do poder e ao estabelecimento de seus órgãos e respectivos limites de ação, trata-se de um documento que disciplina a organização total da República.

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Os atores políticos, notadamente os eleitos pelo voto, não desconhecem o significado do Texto Constitucional. Ao contrário, juraram obedecê-lo. Ainda que esse ato de subserviência se apresente apenas cerimonioso, litúrgico, a História não permitiria a alegação de desconhecimento. O documento político a que todos nós, sociedade organizada, devemos obediência, vem de uma ideia, de um pacto, do século XII, que remodelou a relação do rei inglês com o Estado. O Rei João Sem Terra, com poderes absolutos, encontrou, pois, nas circunstâncias lá existentes, limitação de atuação na Carta Magna.

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No Brasil, também há uma Carta Magna, escrita, elaborada por uma Assembleia eleita para esse fim, de onde emanam as normas a serem seguidas e obedecidas sem qualquer distinção. Vale para todos. E é a "Ela" que se deve prestar continência.

Atribui-se ao monarca francês Luís XIV a frase, dita no século XVII, O Estado sou eu. Para, depois de 900 anos de aprimoramento intelectual, político e social, um presidente eleito democraticamente no Brasil declarar a plenos pulmões: Eu sou a Constituição - em meio a uma ilegal manifestação pedindo intervenção militar.

Como disse, certa vez, o min. Aliomar Baleeiro, do Supremo Tribunal Federal: a discussão oportuna dirá o sentido, o alcance e os limites da Constituição, posta no banco de provas.

*Alexandre Fidalgo, doutorando em Direito na USP, mestre em Direito pela PUC-SP, especialista na área de liberdades públicas (imprensa), sócio titular do escritório Fidalgo Advogados

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