Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Constituição e Democracia

José Carlos Gonçalves Xavier de Aquino1

PUBLICIDADE

Por Mateus Coutinho
Atualização:

Wilson Levy2

PUBLICIDADE

Inicialmente vale registrar que o nosso primeiro texto constitucional editado em 1824 por D. Pedro I, recitava a existência de quatro Poderes, ou seja, o Poder Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Moderador, sendo certo que, neste último, era o imperador o chefe do Estado e, por via de consequência, o que dava a última palavra sobre as decisões dos demais poderes. Todavia, em 1889, por ocasião da república, este poder caiu por terra e exsurgiu a Constituição de 1891 que deu à lume uma nova constituição.

Desde então, discorrer sobre a Constituição Federal de 1988 após os 25 anos de sua entrada em vigor não pode se converter em oportunidade de repetir as obviedades que já se falou e escreveu a seu respeito: que é excessivamente extensa, prolixa, amparada em conceitos por demais abstratos, que instituiu direitos de impossível concretização e que seu rol de direitos sociais traz ônus elevados à atividade produtiva e, por isso está desconectado de um projeto franco de desenvolvimento econômico. Entre outras visões pré-concebidas.

Múltiplas tentativas de desfiguração foram encetadas. É bem de ver que a atual Constituição chamada de Cidadã, depois da sua edição, foi emendada 74 vezes (até 6.8.2013), a alterar substancialmente seu conteúdo e, quando não, ampliá-lo. Sintomático disso é que no dia subsequente à sua publicação foi apresentada a primeira emenda constitucional, através do Deputado Amaral Neto, que previa a pena capital para aqueles que praticassem crimes como o sequestro, o roubo e o estupro quando resultassem na morte dos ofendidos. Porém, a emenda foi derrubada pelo Congresso.

Tais lugares-comuns não contribuem em nada para o debate, embora estejam presentes cotidianamente na mídia impressa, na internet, no rádio e na TV. Daí que uma análise que se proponha a, de fato, compreender o papel da Carta Cidadã de 1988 precisa adotar, como ponto de partida, premissas diversas daquelas que fundam as opiniões vulgares. A mais notável se encerra na compreensão que a Constituição simboliza o desenho normativo de um projeto de nação. Esse projeto, por sua vez, é situado no tempo, ou seja, representa os anseios da sociedade civil à época de sua concepção.

Publicidade

Daí o nível de detalhamento dos direitos fundamentais (que vão do direito à vida a igualdade de gêneros, da vedação à tortura e à censura até a duração razoável do processo) e dos direitos sociais nela contidos (dentre eles a saúde, a educação e a moradia), o que faz os 78 incisos e 4 parágrafos do art. 5o serem tão significativos quanto a previsão, no decorrer de seu texto, da moralidade, eficiência e publicidade como princípios da atuação da administração pública e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Esse caráter temporal, por sua vez, traz à tona o conceito de narrativa. Pretendeu o projeto constitucional, ao definir as bases legais e referenciais para uma Constituição dirigente e compromissária, operar uma ruptura com os modelos de atuação institucionais do passado, marcados por arbitrariedades e violações aos direitos humanos. Por isso seu desenvolvimento é sempre um andar para frente, que se traduz no princípio da vedação de retrocesso. Há espaço para a consolidação de novos direitos, coadunados com as demandas do tempo presente, mas não para supressão de direitos já garantidos.

O principal obstáculo à sua concretização não está no seu conteúdo. Está, em verdade, na baixa densidade do projeto democrático brasileiro. Dito de outro modo, a episódica e não consistente participação da sociedade civil organizada nos processos de ruptura e transição institucional que o país experimentou ao longo de sua existência é responsável por um desacoplamento entre a narrativa constitucional e a atuação da esfera pública. O povo não se sente parte desse projeto de nação, embora tenha sido responsável por ele, ao menos através da legitimidade conferida à representação democrática de então.

Como não se sente parte, não intervém em prol de sua construção. Afinal, embora a Constituição tenha garantido uma série de direitos sociais, absolutamente indispensáveis à proteção dos dezenas de milhões de brasileiros em situação de debilidade e insuficiência (alimentar, econômica, jurídica), não faltam vozes a acusar as leis trabalhistas, recepcionadas ou emanadas do direito social ao trabalho, de serem um estorvo e tampouco quem, entre patrões e empregados, esteja disposto a burlá-la.

A paralisia que decorre desse e de outros impasses acerca de questões que não deveriam mais ser discutidas - ao menos não da forma como o são - é central para a compreensão do problema. Talvez nos falte caldo de cultura jurídica para compreender o papel dirigente e vinculativo da Constituição, que não é mera carta de boas intenções. Nas palavras de Lenio Luiz Streck, a Constituição ainda "constitui-a-ação". No entanto, insistimos em revolver convicções sociais consolidadas, ao invés de mirar o olhar para frente.

Publicidade

A situação é análoga àquela experimentada nos debates acerca das comissões da verdade. Em todos os países da América Latina, que passaram por períodos de exceção no decorrer do século XX, o tema é pacífico e os resultados têm contribuído para fechar feridas psíquicas que as múltiplas formas de violência estatal perpetraram. Há um consenso em torno da assertiva de que o Estado se submete às leis e que a ele compete garantir a sua observância geral, através do equipamento estatal denominado Justiça. No Brasil, não. Ainda não superamos o debate - em tudo singelo - a respeito da inequívoca responsabilidade do Estado e do grau de reprovação de sua atuação pretérita.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Em idêntico sentido está o desenvolvimento de instrumentos de democracia participativa. Não é de hoje que as formas tradicionais de representação política estão em franco processo de esgotamento. Se nas democracias amadurecidas e consolidadas da Europa esse quadro se intensifica mediante a aproximação cada vez maior das plataformas políticas dos partidos tradicionais e deságua nos crescentes índices de absenteísmo eleitoral, na América Latina e, em especial, no Brasil, esse quadro expõe um envelhecimento precoce do nosso jovem projeto democrático e sinaliza perigoso flerte com o passado autoritário. Ao invés de compreender esse processo como tributário de novos desenhos institucionais que envolvem maior participação social no controle das ações do Estado, caminho natural e totalmente possível dentro de uma Constituição que principia com a afirmação de que "todo poder emana do povo", dá-se um passo atrás, atraído pelo retrocesso.

Os 25 anos da Constituição, nesse sentido, devem trazer o convite para uma auto-reflexão criativa sobre o projeto de país que se quer. E os operadores do Direito são parte especialíssima desse processo. Afinal, a judicialização de todas as dimensões da vida social que está por trás dos índices crescentes de litigiosidade - dados seguros apontam para mais de 90 milhões de processos em curso no Brasil - impõe a pergunta: o que se espera das instituições jurídicas nesse 1/4 de século da Constituição?

A questão está em aberto. A única coisa que pode ser dita, de pronto e com alguma facilidade, é o que não se espera da comunidade jurídica: persistência de um ensino calcado numa cultura manualesca - importada de forma obsoleta diretamente de Coimbra - e fundado numa visão compartimentada do Direito, nas quais as disciplinas do saber jurídico não dialogam entre si e encaram a Constituição como uma estranha, a qual não precisam estar vinculadas; compulsão por decidir conflitos de natureza coletiva a partir da ótica individualista da tradição do Direito Privado, em contrariedade ao projeto constitucional; indiferença quanto ao reduzido grau de constitucionalidade presente na produção das leis e na sua aplicação.

Produto imperfeito de um consenso possível, a Constituição, não sem razão chamada de Cidadã, é, ainda, o nosso farol, a orientar o caminho do porvir.

Publicidade

José Carlos Gonçalves Xavier de Aquino. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo e Doutor pela Università Statale Di Milano. Desembargador do TJSP, em exercício na Presidência de Direito Público.Wilson Levy. Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.