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Compensação em embargos à execução: possibilidade ou mais uma hipótese de privação de direitos dos contribuintes e sobrecarga do Judiciário?

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Por Daniella Zagari e Priscila Maria Monteiro Coelho
Atualização:
Daniella Zagari e Priscila Maria Monteiro Coelho. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, mais conhecida como Lei das Execuções Fiscais ("LEF"), prevê em seu art. 16, que o executado poderá apresentar defesa - embargos à execução - no prazo de 30 dias, contados do depósito, juntada de seguro garantia ou carta de fiança ou da intimação da penhora.

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O parágrafo 3º desse artigo estabelece que, além da reconvenção e algumas exceções, não será admitida a compensação em embargos à execução.

A possibilidade de o contribuinte apresentar, como defesa nos embargos à execução, alegação de extinção do débito pela compensação, gerou inúmeras discussões entre contribuintes e Fazenda Nacional, tendo sido a controvérsia solucionada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Repetitivo nº 1.008.343/SP (Tema 294), cujo acórdão foi publicado em fevereiro de 2010.

O STJ decidiu que o óbice previsto no art. 16, §3º, da Lei nº 6.830/80 foi superado com a edição da Lei 8.383/91, sendo admissível, no âmbito de embargos à execução fiscal, a alegação de extinção (parcial ou integral) do crédito tributário em razão de compensação já efetuada.

A fundamentação adotada foi muito coerente com a conclusão: entendeu-se que a compensação tributária possui a natureza de direito subjetivo do contribuinte (oponível em sede de embargos à execução fiscal), na hipótese de concomitância de três elementos essenciais: (i) existência de crédito tributário; (ii) existência de débito do fisco; e (iii) existência de lei específica que autorize a compensação, nos termos do artigo 170 do Código Tributário Nacional.

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Essa norma prevê que a lei pode autorizar a compensação de créditos tributários com créditos do sujeito passivo, vencidos e vincendos, em face da Fazenda Pública. O art. 156, II do CTN determina que a compensação é uma das modalidades de extinção do crédito tributário.

Essa autorização, no âmbito federal, somente ocorreu com a edição da Lei 8.383, de 30 de dezembro de 1991, que possibilitou a compensação, por iniciativa do contribuinte, de tributos e contribuições federais da mesma espécie pagos indevidamente ou a maior, dispensada a prévia autorização da Receita Federal do Brasil (RFB).

Atualmente, estão vigentes as disposições do artigo 74 da Lei nº 9.430/96, que autoriza a compensação entre tributos de espécies distintas, mediante a entrega, pelo contribuinte, da declaração de compensação (PER/DCOMP). Embora a RFB possa homologar ou não a compensação declarada pelo contribuinte, é importante lembrar que não se trata de ato discricionário. Ao contrário, trata-se de ato vinculado, sujeito a controle de legalidade pelo Poder Judiciário (art. 5º, II, da CF).

No momento da edição da LEF, a compensação tributária ainda não estava disciplinada em lei (a Lei nº 8.383 foi editada somente em dezembro de 1991) e, portanto, a Lei de Execuções Fiscais sequer poderia se referir a essa hipótese.

De outra senda, a compensação como encontro de contas está prevista nos artigos 368 a 380 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), configurando modalidade de extinção das obrigações, notadamente no âmbito privado. A mesma disciplina já vinha prevista no Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/1916 - artigos 1.009 a 1.024).

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O intuito do art. 16, §3º, da LEF foi o de coibir a alegação ou pedido do executado de encontro de contas nos autos dos próprios embargos à execução, isto é, é vedada eventual alegação do contribuinte de possuir valores a receber em precatório, por exemplo.

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Ou seja, o que se coibiu foi a hipótese de compensação superveniente, para extinguir a dívida existente, líquida e certa a favor do Fisco, e não a alegação de compensação realizada anteriormente como causa extintiva do crédito tributário, o que é direito subjetivo do contribuinte, uma vez observados os pressupostos legais.

Tanto é verdade que a reconvenção e as exceções também foram vedadas pela LEF para se evitar que pedidos inéditos fossem feitos naquele momento, invertendo a própria estrutura dos embargos à execução. Faz sentido a norma ter vedado essas ações e alegações, sob pena de subverterem a ordem do processo de execução fiscal.

Situação totalmente diversa é a que ocorre após a edição da Lei nº 8.383/91, que disciplinou a compensação a ser realizada pelos contribuintes que, assim, estão autorizados, em havendo um crédito e um débito passíveis de compensação, a realizá-la nos termos dos requisitos e condições estabelecidos na legislação, como modalidade de extinção do crédito tributário.

Sendo a compensação tributária administrativa - admitida desde o advento da Lei nº 8.383/91 e, atualmente, prevista no art. 74 da Lei nº 9.430/96 -  modalidade de extinção do crédito tributário, quer parecer que a interpretação mais correta seja admitir, igualmente às demais causas de extinção do crédito tributário (art. 156, incisos I a XI, do CTN), sua arguição em embargos à execução, desde que realizada anteriormente ao ajuizamento da execução, tal como decidido pelo STJ no julgamento do Tema 294.

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Não obstante, no fim do ano passado, ao apreciar os Embargos de Divergência em RESP nº 1.795.347/RJ, a Primeira Seção do STJ limitou a aplicação do Tema 294 para uma hipótese que poderia inviabilizar o entendimento firmado no âmbito do próprio repetitivo.

Em suma, o STJ entendeu que o controle da legalidade do ato administrativo que indeferiu pedido de compensação tributária deveria ser realizado em via judicial própria, a saber, por meio de ação anulatória, sendo vedada sua arguição em embargos à execução. Ainda, ao se manifestar sobre o quanto decidido tema 294, o STJ afirma que, naquela ocasião, o acórdão não teria tratado especificamente da hipótese em que teria ocorrido indeferimento da compensação na esfera administrativa.

Com todo o respeito ao posicionamento contrário, esse entendimento não parece refletir a melhor interpretação da norma, em seu contexto sistemático e teleológico, e do próprio acórdão proferido sob o regime dos recursos repetitivos, carecendo, também, de razoabilidade.

Primeiro, com relação à indevida limitação da aplicação do tema 294, o teor do acórdão não parece autorizar a conclusão de que o caso concreto objeto daqueles autos trataria de hipótese na qual a compensação teria sido homologada administrativamente.

Se a compensação foi homologada na esfera administrativa, consequentemente, não haveria nenhuma razão ou interesse jurídico para a União propor executivo fiscal e, portanto, sequer haveria necessidade desta alegação em sede de embargos à execução fiscal, pois não haveria dívida a ser cobrada.

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Em segundo lugar, a decisão agora proferida pelo STJ nos embargos de divergência nº 1.795.347/RJ, revela que não houve a efetiva apreciação do mérito e análise da interpretação e alcance do disposto no art. 16, §3º, da LEF, sobretudo após a edição da Lei nº 8.383/91, tal como ocorreu no julgamento do tema 294.

Os contribuintes, com amparo nas decisões proferidas pelo STJ antes mesmo da resolução do tema 294 (há precedentes de 2003, como o REsp 505.535/RS), vêm apresentando, como defesa em embargos à execução, a alegação de extinção do crédito tributário pela compensação. Inclusive, a essa alegação segue-se a realização de complexa prova pericial, em especial para comprovar fiscal e contabilmente o direito ao crédito compensado.

Não parece haver nenhuma justificativa para que, nesse momento, os contribuintes sejam obrigados a desistir ou, mais grave, os seus embargos à execução sejam extintos, após anos de discussão, ao fundamento de que a compensação não poderia ser arguida naqueles autos, mas em outra ação com idêntica finalidade.

É de se ressaltar que essa interpretação poderia conduzir à desconsideração de todos os atos processuais, honorários advocatícios e periciais, tempo das partes, dos serventuários e, sobretudo, do Poder Judiciário, custas e despesas processuais, além dos valores já incorridos e que seriam despendidos em outra ação, a ser proposta com o mesmo objetivo.

Aliás, afastar a aplicação do tema 294 parece conduzir à violação do artigo 927, III, do CPC/15, que determina a observância, pelos juízes e tribunais, do quanto decidido em recursos repetitivos, o que poderia privar os contribuintes do acesso ao Poder Judiciário e do seu direito à justa e efetiva prestação jurisdicional.

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Como consequência, transparece o mal ferimento aos princípios da inafastabilidade do controle jurisdicional, da razoável duração do processo e da eficiência, da economia processual, da razoabilidade, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Finalmente, a prevalência do entendimento firmado nos Embargos de Divergência em RESP nº 1.795.347/RJ poderá acarretar o ajuizamento de diversas ações anulatórias pelos contribuintes, congestionando ainda mais o Poder Judiciário.

Isso, em um cenário no qual, historicamente, as execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. A maior parte dos processos de execução no País é composta por essas execuções, que representam 68% do estoque em execução. Representam aproximadamente 36% do total de casos pendentes e congestionamento de 87% em 2020.

De toda forma, se vier a prevalecer a interpretação dada à LEF nos autos dos embargos de divergência nº 1.795.347/RJ, no mínimo, o entendimento firmado no recurso repetitivo deveria ser superado por se estar diante de uma hipótese - ainda que não justificada - de superação do precedente, o chamado overruling.

E nesse sentido, é de suma importância que o STJ, ao realizar mudança de precedente firmado em julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos, examine todas as consequências do eventual efeito retroativo de seu novo entendimento, a fim de resguardar aqueles contribuintes que agiram com fundamento na jurisprudência até então pacífica, a teor do disposto no art. 27 da Lei nº 9.868/99.

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Em conclusão, quer parecer que este novo entendimento do STJ merece ser revisto, tendo em conta não só a possível violação aos princípios acima apontados, mas o também injustificável estímulo à litigiosidade, que recrudesce como reflexo de novas ações anulatórias que certamente serão propostas como decorrência desse novo entendimento.

*Daniella Zagari e Priscila Maria Monteiro Coelho são sócias da área de Direito Tributário do Machado Meyer Advogados

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