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Compensação ambiental e identidade ecológica

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Por Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser
Atualização:
Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser. FOTO: MPD/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Constituição Federal, no seu artigo 225, caput estatui que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

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JOSÉ AFONSO DA SILVA[1] ensina que "as normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem é que há de orientar todas as formas de atuação no campo de tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior:   a qualidade da vida humana".

Assim, o equilíbrio do meio ambiente, bem como a proteção da biodiversidade, indispensável à manutenção do patrimônio ambiental, constitui direito assegurado pela Constituição Federal.

De seu turno, recepcionada pela Carta Magna, a Lei nº 6938 de 31/08/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, no artigo 2º caput e inciso I estatui que "a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios: I - ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo".

Em relação à necessidade de instituição e demarcação da reserva legal, não há controvérsia quanto à sua obrigatoriedade, nos termos do artigo 3º, III combinado com o artigo 12, ambos do Novo Código Florestal.

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Assim, o proprietário de imóvel rural tem limitação ao uso de sua propriedade, no percentual de 20%, mantido pela Lei nº 12.651/2012.

Nesse sentido, a 1ª Seção do Colendo Superior Tribunal de Justiça pacificou sua jurisprudência a respeito do tema, quando do julgamento, dos Embargos de Divergência no REsp 218.781/PR, em voto da lavra do Ministro Herman Benjamin, assim ementado: 

"PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. CÓDIGO FLORES-TAL (LEI 4.771, DE 15 DE SETEMBRO DE 1965). RESERVA LEGAL. MÍNIMO ECOLÓGICO. OBRIGAÇÃO PROPTER REM QUE INCIDE SOBRE O NOVO PROPRIETÁRIO. DEVER DE MEDIR, DEMARCAR, ESPECIALIZAR, ISOLAR, RECUPERAR COM ESPÉCIES NATIVAS E CONSERVAR A RESERVA LEGAL. RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. ART. 3º, INCISOS II, III, IV E V, E ART. 14, § 1º, DA LEI DA POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (LEI 6.938/81).

  1. (...)
  2. O Código Florestal, ao ser promulgado em 1965, incidiu, de forma imediata e universal, sobre todos os imóveis, públicos ou privados, que integram o território brasileiro. Tal lei, ao estabelecer deveres legais que garantem um mínimo ecológico na exploração da terra - patamar básico esse que confere efetividade à preservação e à restauração dos 'processos ecológicos essenciais' e da 'diversidade e integridade do patrimônio genético do País' (Constituição Federal, art. 225, §1º, I e II) -, tem na Reserva Legal e nas Áreas de Preservação Permanente dois de seus principais instrumentos de realização, pois, nos termos de tranquila jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, cumprem a meritória função de propiciar que os recursos naturais sejam 'utilizados com equilíbrio' e conservados em favor da 'boa qualidade de vida' das gerações presentes e vindouras (RMS18.301/MG, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ de 3/10/2005. No mesmo sentido, REsp 927.979/MG, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJ31/5/2007; RMS 21.830/MG, Rel. Min. CASTRO MEIRA,DJ 1º/12/2008).
  3. As obrigações ambientais ostentam caráter propter rem, isto é, são de natureza ambulante, ao aderirem ao bem, e não a seu eventual titular. Daí a irrelevância da identidade do dono - ontem, hoje ou amanhã -, exceto para fins de imposição de sanção administrativa e penal. 'Ao adquirir a área, o novo proprietário assume o ônus de manter a preservação, tornando-se responsável pela reposição, mesmo que não tenha contribuído para o desmatamento' (REsp 926.750/MG, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ 4/10/2007. No mesmo sentido, REsp 343.741/PR, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, DJ 7/10/2002; REsp 264.173/PR, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJ 2/4/2001; REsp 282.781/PR, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 27.5.2002).
  4. A especialização da Reserva Legal configura-se 'como dever do proprietário ou adquirente do imóvel rural, independentemente da existência de florestas ou outras formas de vegetação nativa na gleba' (REsp 821.083/MG, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe 9/4/2008. No mesmo sentido, RMS 21.830/MG, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ 01/12/2008; RMS 22.391/MG, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJe 3/12/2008; REsp 973.225/MG, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJe3/9/2009).
  5. Embargos de Divergência conhecidos e providos"[2].

Discute-se se a área onde se pretende a compensação ambiental deve ser pautada ou não pela observância da identidade ecológica entre ela e a vegetação da propriedade rural.

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Compensar, segundo ÉDIS MILARÉ[3], "em linhas gerais, significa oferecer uma alternativa, com peso igual ou maior, para uma forma de uso ou de lesão (evitável ou inevitável) de um bem de qualquer natureza, que, por isso, deve ser substituído por outro, a fim de remover ou minimizar o dano verificado. No caso da compensação ambiental, requer-se, normalmente, que o uso ou o dano sejam inevitáveis ou se façam necessários em vista de um benefício maior e em função do interesse social".

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A compensação da reserva legal deficitária deverá ser precedida pela inscrição da propriedade no CAR e poderá ser feita mediante o cadastramento de outra área equivalente e excedente à Reserva Legal, em imóvel de mesma titularidade ou adquirida em imóvel de terceiro, com vegetação nativa estabelecida, em regeneração ou recomposição, desde que localizada no mesmo bioma[4]. Contudo, é indiscutível que pautar-se a compensação ambiental apenas pelo critério de área no mesmo bioma é insuficiente como mecanismo de preservação ambiental amplo e eficaz. Isso porque pode acontecer de, dentro de um mesmo bioma, existir uma alta heterogeneidade de formações vegetais. Assim, se o único requisito for a identidade de bioma, o proprietário poderia 'compensar' seu déficit de vegetação com formações vegetais de características completamente diferentes, em flagrante ofensa aos princípios constitucionais que buscam a preservação de todos os ecossistemas existentes em nosso território nacional.

Cabe acrescentar, ainda, que no julgamento conjunto das ADI nº 4.901, 4.902, 4.903, propostas pela Procuradoria Geral da República, ADI nº 4.937-DF proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e ADC nº 42-DF, proposta pelo Partido Progressista (PP), Pleno, 28-2-2018, Rel. Min. Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a validade de diversos dispositivos da Lei nº 12.651/12, inclusive em relação àqueles referentes à Reserva Legal:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. Direito ambiental. Art. 225 da Constituição. Dever de proteção ambiental. Necessidade de compatibilização com outros vetores constitucionais de igual hierarquia. Artigos 1º, IV; 3º, II e III; 5º, caput e XXII; 170, caput e incisos II, V, VII e VIII, da CRFB. Desenvolvimento sustentável. Justiça intergeracional. Alocação de recursos para atender as necessidades da geração atual. Escolha política. Controle judicial de políticas públicas. Impossibilidade de violação do princípio democrático. Exame de racionalidade estreita. Respeito aos critérios de análise decisória empregados pelo formador de políticas públicas. Inviabilidade de alegação de "vedação ao retrocesso". Novo Código Florestal. Ações diretas de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade julgadas parcialmente procedentes. (...). 22. Apreciação pormenorizada das impugnações aos dispositivos do novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012): (...). (r) Art. 44; 48, § 2º; e 66, §§ 5º e 6º (Cota de Reserva Ambiental CRA): [...] Por fim, a necessidade de compensação entre áreas pertencentes ao mesmo bioma, bem como a possibilidade de compensação da Reserva Legal mediante arrendamento da área sob regime de servidão ambiental ou Reserva Legal, ou, ainda, por doação de área no interior de unidade de conservação, são preceitos legais compatíveis com a Carta Magna, decorrendo de escolha razoável do legislador em consonância com o art. 5º, caput e XXIV, da Constituição. CONCLUSÃO: Declaração de constitucionalidade dos artigos 44, e 66, §§ 5º e 6º, do novo Código Florestal; Interpretação conforme a Constituição ao art. 48, § 2º, para permitir compensação apenas entre áreas com identidade ideológica (vencido o relator). (...). 23. Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4901, 4902, 4903 e 4937 e Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 42 JULGADAS PARCIALMENTE PROCEDENTES".

Conforme decisão proferida na ADI nº 4.901-DF, o Pretório Excelso, por maioria, (i) conferiu interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 48, § 2º do Código Florestal, para permitir compensação apenas entre áreas com identidade ecológica, e (ii) reconheceu a constitucionalidade do art. 66, § 5º e 6º da LF nº 12.651/12. A adoção do critério da identidade ecológica transcende àquele previsto em lei (mesmo bioma), conforme se extrai do voto do Min. Marco Aurélio:

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(...). Adota-se entendimento semelhante relativamente aos dispositivos que autorizam a compensação da reserva legal sem identidade ecológica entre as áreas (artigos 48, § 2º, e 66, § 5º, incisos II e IV, e § 6º). O uso do critério da identidade do bioma é insuficiente a assegurar que a compensação entre as áreas esteja em harmonia com a tutela ambiental. O bioma constitui espaço com amplitude territorial acentuada, de modo que, dentro dessa área, coexistem inúmeros ecossistemas diferentes, cuja biodiversidade deve ser preservada. A ressaltar essa óptica, basta observar que, consoante dados fornecidos pelo Ministério do Meio Ambiente, no bioma cerrado existem ecossistemas que se estendem desde o Paraná até o norte do Maranhão. É dizer, apesar de localizados no mesmo bioma, são distintas a flora e a fauna neles encontradas.

A compensação de áreas localizadas em pontos díspares do território nacional, embora no mesmo bioma, surge inadequada para a tutela do meio ambiente, contrariando o comando constitucional alusivo à preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético do País inciso II do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Mostra-se necessário conferir aos preceitos interpretação conforme à Constituição Federal para condicionar a compensação de áreas de reserva legal desmatada à existência de identidade ecológica com o espaço correspondente localizado no mesmo bioma.

É impossível, sob o enfoque científico, admitir-se a compensação total da reserva legal bem como que seja feita de forma aleatória, em qualquer espaço territorial do bioma Mata Atlântica ou Bioma Cerrado (os únicos biomas abrangidos pelo Estado de São Paulo).

Nesse sentido, estudo levado a efeito pelo GAEMA, do Ministério Público de São Paulo demonstra que: 

"Cada bioma brasileiro ocupa grandes extensões territoriais com características geográficas muito distintas, com grande variação de clima, de latitude, de topografia, de inclinação, de tipo de solo, de habitats e de biodiversidade em distintos centros de endemismo. Por isso, se considerarmos para fins de compensação toda a extensão de um bioma, não haverá satisfatória preservação da biodiversidade e das demais funções ecológicas da reserva legal (KAGEYAMA, 2011, p. 4; METZGER, 2011, p. 2-3; ENGEL, 2011, p. 3; MARTINS, 2011, p 3; SOUZA & VARANDA, 2011, p. 2; AMORIM, 2011, p. 1-2; RODRIGUES, 2011, p. 2; SPAROVEK, 2011, p. 2; TUNDISI, 2011, p. 3). A compensação de reserva legal exige, portanto, o estabelecimento de limites e critérios que garantam a representatividade da biodiversidade (comunidades biológicas similares). O critério de compensação de reserva legal deve levar em conta: (i) a equivalência de composição (equivalência compositiva) e a (ii) a equivalência de função (equivalência funcional) (METZGER, 2011, p. 2-3). A equivalência compositiva tem como base o conjunto de espécies (comunidades biológicas) que compõem um centro de endemismo (espécies que se encontram em uma localidade).

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A equivalência funcional, como critério de compensação, deve levar em consideração todas as funções ecológicas cumpridas pela reserva legal (bióticas, hídricas, edáficas, climáticas, estéticas, sanitárias e econômicas). É a partir da observância desses critérios que se pode estabelecer a área onde a compensação deve ser feita, o que necessariamente implica proximidade geográfica."

Nesse passo, o critério da "identidade ecológica" deve ser aplicado a todas as modalidades de compensação ambiental previstas no artigo 66 do Código Florestal, de modo a garantir a completa proteção ambiental dos diversos ecossistemas existentes.

[1]Curso de Direito Constitucional, 9ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, p. 719

[2]EREsp 218.781/PR, 1ª Seção, Rel. Min. Herman Benjamin, j. em 09/12/2009, DJe 23/02/2012.

[3]Direito do Ambiente, 10ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.341.

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[4]Vide: artigo 66, parágrafos 5° e 6º do atual Código Florestal.

*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático

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