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Como chegamos ao fim do voto de qualidade no Carf?

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Por Vinicius Jucá Alves e Bruno Rodrigues Teixeira de Lima
Atualização:
Vinicius Jucá Alves e Bruno Rodrigues Teixeira de Lima. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A recém-sancionada Lei nº 13.988/20, fruto da conversão da Medida Provisória nº 899/19, editada no último semestre do ano passado, representa um inegável marco para o contencioso tributário federal. Muito além disso, ajuda a compreender como funciona o movimento democrático e como os produtos legislativos são construções realizadas a partir de condutas e eventos passados. Afinal, depois de tentativas fracassadas, como chegamos ao fim do voto de qualidade no Carf?

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A MP foi editada pelo poder executivo com a pretensão de regulamentar o dispositivo da "transação" no Código Tributário Nacional. A finalidade da norma era, dentre outras, reduzir a "excessiva litigiosidade relacionada a controvérsias tributárias".

Durante a sua tramitação no Congresso Nacional, o texto da MP sofreu alteração para acabar com o voto de qualidade (artigo 28). Depois de muita discussão de Deputados, Senadores e do próprio Presidente da República, com diversas notícias sobre a pressão que a Receita Federal do Brasil (RFB) e outros órgãos fizeram contra essa medida, o fim do voto de qualidade virou Lei.

Ou seja, de início, podemos ver que o voto de qualidade (i) tinha pertinência temática com a MP (reduzir excessiva litigiosidade em matéria tributária) e (ii) a tramitação para aprovação da Lei foi regular, com ampla reflexão pelo Congresso e pelo Presidente da República, que sancionou a norma no último dia do prazo. Estamos diante de uma opção legislativa que deve ser respeitada.

Para entender a discussão sobre o voto de qualidade, é preciso saber como funcionavam os julgamentos no Carf antes da Operação Zelotes, deflagrada pela Polícia Federal em 2015 com o objetivo de investigar acusações de corrupção no Carf, e como esses julgamentos passaram a funcionar desde então.

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De acordo com o Decreto nº 70.235/72, os julgamentos do Carf são feitos de forma "paritária". As Turmas de julgamento do Carf terão conselheiros (juízes) representantes dos contribuintes e do Fisco, em número igual. Como a composição das Turmas é sempre em número par, muitas vezes esses julgamentos terminam empatados.

Para resolver esse impasse, o Decreto prevê que o Presidente da Turma julgadora (que será sempre representante do Fisco) dará o voto de minerva, também chamado de voto de qualidade. É exatamente nesse ponto que vem a mudança da Lei nº 13.988/20: de agora por diante, em caso de empate, a discussão se resolve em favor do contribuinte.

E porque isso foi alterado, depois de tantos anos de funcionamento do Carf dessa forma? Antes do advento da Operação Zelotes, o voto de qualidade do Presidente de Turma não tinha a mesma repercussão que tem hoje.

Naquele tempo, os advogados tinham a percepção de que o Carf proferia julgamentos técnicos e cancelava cobranças indevidas de tributos, mesmo em relação às matérias que poderiam representar a arrecadação de bilhões de reais à União (tais como ágio, hiring bônus, juros sobre multa de ofício etc.).

O voto de qualidade nas mãos do Presidente de Turma causava desconforto, mas esse instrumento costumava ser utilizado com razoabilidade e bom senso, criando um ambiente de pacificação. Com a reabertura do Carf após a Operação Zelotes, a sensação geral era de que "o pêndulo agora está do lado da Receita Federal". E estava mesmo.

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Em 2016, o Carf produziu um relatório de decisões contendo diversas informações quantitativas e qualitativas do órgão e de seus julgamentos. Nesse relatório, o próprio Carf reconheceu a alteração da jurisprudência do órgão após a nova composição da Câmara Superior, desde a Zelotes, em relação a diversas matérias. A análise individualizada das matérias revelou ainda que todas estavam sendo decididas favoravelmente à Fazenda Nacional, com exceção de uma ou outra que tinha alguma dependência do contexto fático do caso.

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Outro dado interessante pode ser obtido por meio da conjugação do relatório "Dados Abertos", produzido pelo Carf, e as recentes informações notificadas na imprensa pelo Sindifisco e pela Unafisco. Entre 2017 e 2019, o voto de qualidade foi usado em apenas 7% dos casos julgados noCarf, mas o dado esconde a importância desse percentual em termos monetários. Apenas em 2017, o Carf julgou casos no valor total de R$ 323 bilhões, sendo que R$ 114 bilhões foram decididos por voto de qualidade. Desses, R$ 110 bilhões foram decididos a favor da Fazenda Nacional.

O uso abusivo do voto de qualidade em favor do Fisco cedeu espaço para a mudança legislativa aqui discutida. A extinção do voto de qualidade, nesse contexto, é uma opção legislativa em resposta ao mal uso do voto de qualidade, que privilegia a segurança jurídica, a redução dos litígios tributários e, por consequência, a diminuição do custo Brasil. Cabe agora ao Carf voltar a proferir decisões exclusivamente técnicas, imparciais e com bom senso, independentemente de quem seja beneficiado, Fisco ou contribuintes.

*Vinicius Jucá Alves, sócio de TozziniFreire Advogados e professor de direito da FGV Direito - SP; Bruno Rodrigues Teixeira de Lima, advogado de TozziniFreire Advogados, especialista em direito tributário, contador e mestre em ciências contábeis pela Universidade de Brasília

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