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CNJ reconhece a necessidade de julgar com perspectiva de gênero

Por Mariana Tripode
Atualização:
Mariana Tripode. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Depois de um período mais de idas do que de vindas, finalmente nós, advogadas feministas, temos algo a comemorar. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou agora em outubro o novo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Trata-se de um esforço da Justiça no sentido de remover dos processos as digitais do machismo e da misoginia.

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O novo protocolo é endereçado especialmente a juízes e juízas de todo o país. De uma forma direta e transparente, o documento coloca luz sobre os casos em que se identificam atitudes dos magistrados que se voltam contra as mulheres, estejam elas no posição de postulantes de uma ação, estejam como suas advogadas, defensoras, promotoras ou testemunhas. O esforço é acabar com as distorções que vivenciamos todo dia na batalha diária do exercício do Direito.

O protocolo propõe um novo olhar em relação ao mister do juiz. Pela primeira vez, ele sugere ao próprio magistrado uma análise de consciência para observar em si mesmo o quanto de preconceito carrega. O CNJ pede aos juízes brasileiros que, antes de olharem para as mulheres meramente como a parte frágil, percebam o tanto de machismo estrutural que eles próprios absorveram, naturalizaram e transbordam em seus julgamentos.

Ao julgarem uma causa que envolva uma mulher, juízes e, infelizmente, as juízas também, estão colocando na frente suas convicções pessoais, seus dogmas e preconceitos. Em vez de Justiça, perpetuam a injustiça.

No fundo, o protocolo enfrenta essa realidade ao admitir que a violência de gênero vem sendo um fenômeno comum nos tribunais no Brasil. E pretende reverter essa chaga com a prescrição de uma nova postura perante as ações que envolvam a perspectiva de gênero.

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Não se trata de proteger a mulher tenha ela feito o que fizer. A lei deve ser observada e valorizada, sempre. Tampouco não se trata de achar que, a princípio, uma mulher jamais estará errada.

A questão é entender de uma vez por todas que a desigualdade de gênero existe, é real. Até porque, mesmo com todas as provas indicando o contrário, muito juiz insiste em não tratar a mulher como vítima.

O protocolo deixa claro que, quando uma mulher sofre violência doméstica, por exemplo, isso acontece em razão da dominação que os homens continuam exercendo sobre as mulheres na sociedade. É fundamental que juízes e juízas entendam isso e levem em conta essa questão no julgamento.

Um juiz pode até achar que está vendo tudo como se fosse uma questão individual. Mas não é. E o protocolo finalmente reconhece isso. Basta lembrar que a violência sexual, embora atente contra a liberdade e a dignidade do ser humano, só acontece mesmo porque nossa sociedade é moldada na dinâmica patriarcal.

É fácil demonstrar isso. Afinal, a grande maioria das meninas e mulheres são vítimas de homens que estão bem perto delas, muitos dentro de casa. Em maior ou menor grau, o problema é que os motivos que levam à violência de gênero sempre estão relacionados à desigualdade estrutural.

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Mais do que isso, é preciso celebrar algumas inovações incluídas no protocolo do CNJ. Entre elas, a que define o não pagamento de pensão alimentícia como uma séria violência patrimonial.

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Esse tipo de violência é uma das mais vergonhosamente escamoteadas na sociedade brasileira e uma das mais difíceis de provar, embora seja frequentemente praticada contra a mulher pelo ex-companheiro - que pode ser um homem ou outra mulher, admitida uma relação homoafetiva.

Isso é violento na medida em que a falta dos recursos vindos da pensão muitas vezes retira da mulher qualquer chance de sobreviver financeiramente. É preciso admitir que essa atitude pode ser uma espécie de chantagem, ou uma forma de mostrar superioridade econômica sobre a mulher, num momento de fragilidade dela diante da separação do casal. Ela, além de se ver sem currículo, fica sem renda.

Essa visão da negação da pensão alimentícia como violência patrimonial está explícita no protocolo e também associada a outras modalidades de violência, notadamente psicológica e moral. A situação é tipificada como delito de abandono material, abandono intelectual e apropriação indébita, em episódio de violência doméstica e familiar contra a mulher, segundo estabelece o art. 5º da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006).

Baseado nisso, já redijo minhas novas petições, na fé de que o protocolo venha a ser um instrumento efetivo daquilo que recomenda sobre esse tema em relação à aplicação de sanções cíveis e criminais descritas no caput, e parágrafo único do artigo 224 do Código Penal e nos artigos 246 e 168. Simples, transparente e eficaz.

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*Mariana Tripode é advogada especialista em Direito das Mulheres, Direito e Gênero pela Escola de Magistratura do Distrito Federal. É fundadora do primeiro escritório de advocacia para mulheres do DF e da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres. Foi presidente da Comissão da Mulher da ABA- Associação Brasileira de Advogados de Brasília

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