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Clareza das decisões judiciais, delimitação dos tipos penais e papel da AGU: o caso da criminalização da homofobia 

Por Fernanda Regina Vilares
Atualização:
Fernanda Regina Vilares. Foto: Divulgação

Muito tem se discutido sobre os embargos de declaração opostos pela Advocacia-Geral da União na ação que cuidou do delicado e importante tema da criminalização da homofobia e transfobia. A polêmica, natural em um tema tão palpitante, decorre de uma análise apressada dos fatos e pode ser sanada com um exame detalhado do histórico da ação combinado com os princípios que permeiam do Direito Penal e a função da advocacia de Estado.

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A ADO n. 26 foi proposta para atender à legítima preocupação de suprir uma lacuna no ordenamento jurídico relativa à ausência de tipo penal que eleve à categoria de crime atos consistentes em homofobia e transfobia. O raciocínio apresentado faz uma interpretação alargada da ideia de racismo para concluir que discriminações motivadas por identidade de gênero e/ou orientação sexual deveriam, em um primeiro momento, ser enquadradas no crime já existente e anunciado na própria Constituição Federal, no artigo 5º, inc. XLII e na Lei n. 7.716/89. Após, o Congresso Nacional deveria ser conclamado a utilizar seu poder legislativo para elaborar lei específica para a situação. 

Em 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal conclui o julgamento reconhecendo a mora do legislador no que tange ao tema e, por meio da técnica da interpretação conforme, afirmou ser possível o enquadramento das condutas de homofobia e transfobia nos tipos penais da Lei n. 7.716/89, por serem condutas que configuram espécie de racismo em sua dimensão social, que não abarca somente aspectos biológicos ou fenotípicos dos indivíduos, mas também histórico culturais. Decisão similar já havia sido proferida no Habeas Corpus n. 82.424 (decidido em 2003), ao estender o conceito de racismo para condutas antissemitas.

O acórdão referente ao julgamento foi publicado em 06 de outubro de 2020 com ementa na qual expressamente é excepcionado o exercício da liberdade religiosa e a manifestação de opiniões relativas ao comportamento sexual e identidades de gênero, desde que não sejam manifestações do discurso de ódio. Para tanto, foram tecidas considerações sobre a tolerância e liberdade de expressão. 

Esse breve relato é importante para entender que o tema da liberdade religiosa foi trazido pelo próprio acórdão recentemente publicado. Com isso, verificamos que o primeiro ponto de indagação que vem sendo levantado não tem razão de ser diante da regra de que os recursos processuais só podem ser apresentados a partir do momento da publicação do acórdão. 

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É importante lembrar que a prestação jurisdicional é entregue por meio da utilização do instrumento da linguagem e este sempre dá margens a entendimentos e interpretações diversas. Para evitar mal-entendidos decorrentes de diversas ilações, o legislador previu esse recurso: os embargos de declaração. Consiste em uma primeira oportunidade das partes solicitarem esclarecimentos aos julgadores, para que o alcance das consequências da decisão fique claro. É algo tão natural ao sistema que o autor da ação também apresentou os seus próprios embargos de declaração. 

Em que pese a plena concordância com o mérito da questão e a importância de proteger os vulneráveis, bem como dar a devida resposta penal a violações de seus direitos, é preciso recordar constantemente o Estado Democrático de Direito exige o cumprimento de regras previamente estabelecidas. O AGU tem como uma de suas funções a preservação da ordem jurídica e a curadoria constitucional das normas. No exercício dessa função expressamente prevista na Constituição, surge o dever de se manifestar em todas as ações constitucionais perante o STF com o escopo de assegurar a necessária segurança jurídica. 

Nesse sentido, a defesa do direito das minorias precisa ser operacionalizada dentro da regulamentação respectiva. No caso concreto, isso significa utilizar os devidos instrumentos judiciais e respeitar os princípios do direito penal. 

Os embargos de declaração da AGU chamaram atenção para a (in)adequação técnica da utilização do instrumento da interpretação conforme para solucionar um caso de omissão legislativa. Não se negou a existência da omissão, tampouco a relevância de resolvê-la, mas apenas foi apontada uma imprecisão que, se aplicada em outros casos, pode levar a soluções injustas.

Não obstante, o Direito Penal, como instrumento subsidiário do Estado para responder a agressões em face de valores relevantes, porquanto pode resultar na grave restrição da liberdade de um cidadão, tem regras rígidas que devem ser observadas. Em primeiro lugar, os crimes devem ser criados por lei, uma vez que o legislador detém mandato conferido pela população para escolher as regras de convivência social. Além disso, essas regras devem ser as mais específicas possíveis, em respeito ao princípio da tipicidade que quer evitar punições arbitrárias a quaisquer condutas que possam ser genericamente classificadas como delitos. 

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Nesse sentido, ao se deparar com uma excepcionalidade do sistema, qual seja, a extensão de um tipo penal (o de racismo) para situações que não foram previamente pensadas e abarcadas pelo legislador, cabe à AGU ser responsável com a compreensão dessa nova interpretação, bem como prezar pela aplicação do crime em conformidade com o princípio da igualdade, conferindo tratamento uniforme a todos aqueles que apresentam vulnerabilidade similar. Como consequência óbvia e, ao mesmo tempo, existe a preocupação de que eventual punição dos violadores das regras seja feita de forma estrita e legítima, razão pela qual o esclarecimento é indispensável no que tange ao uso de liberdades como a de expressão, científica e a religiosa. 

A AGU contribui para a harmonização dos diversos Direitos Fundamentais que atuam no caso, sem prejuízo de nenhum deles, mas, sim, com a promoção e proteção de todos, sem exceção. A decisão está em vigor e assim permanecerá. Até que sobrevenha lei específica, a AGU busca colaborar com a segurança jurídica quando da aplicação da decisão. 

*Fernanda Regina Vilares, assessora especial do Advogado-Geral da União. Mestre e Doutora em Processo Penal pela USP. Professora.

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