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Cide-Digital e as jabuticabas brasileiras

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Por Luiz Roberto Peroba e Bruno Lorette Corrêa
Atualização:
Luiz Roberto Peroba e Bruno Lorette Corrêa. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No final de setembro, ocorreu a primeira audiência pública para discussões sobre o Projeto de Lei (PL) n° 2.358/2020, de autoria do Deputado Federal João Maia (PL/RN) e que prevê a instituição da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a receita bruta de serviços digitais prestados pelas grandes empresas de tecnologia (CIDE-Digital).

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A CIDE-Digital, que tem potencial para ser uma nova jabuticaba brasileira, foi desenhada para incidir, a uma alíquota progressiva de 1, 3 e 5%, sobre receita bruta decorrente da (i) exibição de publicidade em plataforma digital para usuários localizados no Brasil, (ii) disponibilização de plataforma digital para fins de intermediação de bens e serviços e (iii) transmissão de dados de usuários coletados durante o uso de plataforma digital ou gerado por esses usuários.

Dentre os pontos trazidos na audiência, chamaram atenção os comentários sobre o desalinhamento do Projeto de Lei com as recentes discussões promovidas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que visam revogar medidas unilaterais de tributação ao redor do mundo e definir, em consenso, o que pode ser considerado como economia fiscal para fins de tributação, bem como com o objetivo do Brasil de simplificar seu sistema tributário.

Ademais, foi destaque o registro de que as justificativas para a criação de uma nova contribuição partem de premissas equivocadas que visam comparar o modelo de tributação brasileiro ao modelo de tributação de países europeus.

Isso porque o Brasil adota o sistema de tributação de renda na fonte, que já autoriza o fisco brasileiro a arrecadar parcela relevante dos valores remetidos ao exterior para remunerar as empresas que não têm presença física no país. Além disso, aqui existem uma série de particularidades que já obrigam as empresas do setor de tecnologia a se estabelecerem localmente para acessar nosso mercado consumidor, como por exemplo, controle cambial, uso reduzido de cartão de crédito internacional, etc., o que as fazem recolher uma série de tributos locais.

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Já na Comunidade Europeia, a discussão está relacionada à necessidade de criação de um digital tax para evitar que os lucros auferidos pelas multinacionais de tecnologia em países com grande mercado consumidor sejam transferidos sem qualquer tributação para seus estabelecimentos em países com tributação favorecida. Por isso que, enquanto lá ainda se discute a criação de uma regra mais clara para identificação do estabelecimento permanente, alguns países europeus decidiram implementar seus próprios digital taxes, a fim de evitar, de forma temporária, a transferência desses lucros para o exterior.

A primeira discussão pública da CIDE-Digital, portanto, ficou marcada pela existência de um consenso técnico quanto à desnecessidade e prejudicialidade ao ambiente de negócios na criação de um novo tributo como a CIDE-Digital, a qual vai onerar ainda mais as empresas de economia digital e prejudicar o desenvolvimento tecnológico no país.

A propósito do tema, além dos argumentos apresentados nessa audiência, gostaríamos de acrescentar que afirmação de que as empresas de tecnologia não recolhem tributos no Brasil é falsa e que, se em algum caso em específico, tributos devidos nas operações desse setor não estão sendo recolhidos, o problema não estaria na regra, mas sim no trabalho de fiscalização da RFB.

Com efeito, segundo informações fornecidas pela própria RFB ao Dep. Federal João Maia (PL/RN), autor do PL da CIDE-Digital, a verdade é que as "empresas globais de internet" suportam entre os anos de 2016 a 2018 um percentual de 4,85% de tributos sobre sua receita bruta e de 24,21% sobre seu Lucro Real, enquanto que as demais empresas de outros setores suportam um percentual menor de 3,66% sobre sua receita bruta e de 16,89% sobre seu Lucro Real. Ademais, nas remessas ao exterior, tais empresas globais de internet estiveram sujeitas a uma carga fiscal média de 16,10% no ano de 2018.

Inclusive, em razão das informações apresentadas pela RFB e, principalmente, após notícia da abertura de investigações à CIDE-Digital pela United States Trade Representative (USTR) e o risco de retaliação pelo governo americano, o Governo Federal se manifestou contra a criação de um tributo específico sobre serviços digitais, como tentativa feita por meio do PL n° 2.358/2020, conforme aqui noticiado.

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Daí que as discussões sobre o tema não devem revolver sobre a criação de um novo tributo, tal como a CIDE-Digital, porque desnecessária; mas na restruturação da sistemática de cobrança e fiscalização dos tributos já existentes, para garantir maior efetividade do sistema tributário.

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Uma reforma tributária ampla, não-fatiada, inclusiva, com participação de todos os setores relevantes da sociedade civil e que objetive a redução de complexidade do sistema tributário (por exemplo, que envolva a criação de um IVA federal e simplificado), é, sem dúvida, a melhor saída para resolver o complexo ambiente fiscal existente no país e cobrir eventuais gargalos de arrecadação, caso existentes.

De fato, há muito tempo já é tempo de rever o nosso complexo ambiente tributário. Inclusive, é dever do Senado Federal avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias dos entes federados, para implementar melhorias a esse sistema (art. 52, XV, CF/88, pós Emenda Constitucional 42/2003).

Já aprovação de leis esparsas, desconectadas de um plano global de tributação da economia digital e de restruturação das regras tributárias e inspirada em realidades que não convergem para a realidade brasileira, não é o caminho mais adequado para a evolução brasileira, como tínhamos defendendo.

Na verdade, medidas como o PL 2.358/2020 apenas criam novas "jabuticabas", o que o país já tem de sobra e o contribuinte já está farto de engolir.

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*Luiz Roberto Peroba, sócio de Tributário do Pinheiro Neto Advogados, presidente da comissão de contencioso tributário da OAB/SP, diretor da ABDTIC. Foi assessor da relatoria da PEC 233/2008

*Bruno Lorette Corrêa, associado de Tributário do Pinheiro Neto Advogados, secretário geral da comissão de contencioso tributário da OAB/SP. Especialista em direito tributário pela FGV/SP

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