Um ano e meio já decorreu com a reclusão, o pânico e a incerteza. Aspira-se, agora, uma formatação diferente do modo de pensar dos brasileiros, para que se extraiam lições factíveis dessa duríssima prova.
Como a maior parte dos nacionais habita a cidade, é nesta que as mudanças seriam mais urgentes e essenciais. Dentre as propostas formuladas, é bem instigante aquela elaborada por Nabil Bonduki, professor da FAU USP e relator do plano diretor do município de São Paulo.
Ele indica 22 pontos como os principais impactos da peste na vida urbana. Vale a pena acompanhar seu raciocínio.
- O lugar central da vida familiar é a casa. Além de ser onde se mora, converteu-se em espaço de trabalho, de estudo, do lazer, do exercício físico e do relacionamento social possível. A moradia é um direito fundamental, explicitado na Constituição Cidadã. Só que esse direito não é fruível por milhões de pessoas, aquelas que não têm onde morar. A capital paulista, por exemplo, é o destino de milhares de pessoas que acreditam encontrar nela condições existenciais mais favoráveis do que em suas origens. Não é o que acontece para grande parte dos migrantes. É urgente se adote uma política municipal de oferta de moradia, mais agressiva e eficiente.
- Empresas, ONGs e órgãos públicos precisam se organizar para permitir que o home office continue. Essa tática mostrou-se bastante satisfatória e deve permanecer, pois representa sensível economia de tempo e de recursos, além de ser ambientalmente correta.
- As aulas presenciais são requeridas e devem voltar, mas o uso do mundo web é algo que não pode ser descartado. O conteúdo acessível pela internet pode ser atualizado com facilidade e é muito mais atrativo do que as aulas prelecionais. Todo o sistema educacional deve investir na capacitação docente e na produção de material e conteúdo cada vez mais sedutores, para que a pesquisa se torne um prazer e não uma obrigação.
- A conectividade deve chegar a todos os lares, principalmente os mais humildes e o governo tem condições de exigir que as concessionárias cumpram os seus compromissos de fazer chegar banda larga e todas as comunidades, para que a navegação virtual seja rotina facilitada para toda a população.
- O acesso dos mais vulneráveis a uma habitação digna deve ser prioridade absoluta para o governo. Sem isso, corre-se o risco de aumentar o fosso que separa incluídos e excluídos nesta sociedade iníqua. Uma das mais desiguais do planeta.
- A situação da infraestrutura dos assentamentos precários sempre foi ruim, mas a pandemia escancarou a condição de miséria de milhões e cuidar do saneamento e da urbanização deve ser meta permanente e compromisso efetivo do poder público.
- Os arquitetos e estudantes de arquitetura devem ser chamados a contribuir como a política de construção de conjuntos habitacionais, a partir de projetos individualizados e não na frustrante homogeneidade dos exemplares que se espalham pelo Brasil.
- Não se justifica, num país com as nossas dimensões territoriais, edificar uma casa praticamente geminada com a outra, sem espaço para jardim, horta e pomar, que fazem parte da tradição brasileira.
- A mesquinha economia de espaço cria conflitos entre vizinhos e é também causa de separação entre casais. em 2020, os divórcios cresceram 15% em relação a 2019 é isso só intensifica a carência de moradias.
- O home Office veio para ficar e por isso o deslocamento entre moradia e trabalho torna-se eventual, o que permite maior flexibilização do local de moradia e reduz tempo e custo do transporte.
- Famílias situadas nos estratos médios e altos de renda podem residir distantes do local de trabalho, nos condomínios dos arredores da cidade, na praia ou no campo. A pandemia mostrou que essas casas de veraneio ou de férias de inverno passaram a ser residência efetiva daqueles que puderam continuar a trabalhar à distância. Fenômeno que não pode deixar de ser observado pelo poder público e pelos urbanistas. A fuga de quem pode escapar desta conurbação insensata chamada São Paulo, não é algo que se deva criticar antes de verificado o efeito do potencial alívio na superpopulação e numa demografia potencializada, que não é sinônimo de vida decente e mais satisfatória.
Ainda faltam 11 dos indicadores de Nabil Bonduki e talvez seja mais conveniente abordá-los numa outra reflexão que virá a seguir. É material para ser assimilado e digerido por todos os interessados em fazer das cidades brasileiras, na era pós pandemia, espaços de convívio harmônico e não cenário de lutas ideológicas e de polarizações que só refletem a fragmentação patológica da maior parte da sociedade brasileira.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras, gestão - 2021 - 2022