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Censo 2020 da OAB/SP ignora a representatividade das mulheres na advocacia

Por Antonio Baptista Gonçalves
Atualização:
Antonio Baptista Gonçalves. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O 1° Censo da Advocacia Paulista, lançado em 14 de dezembro de 2020, continua. E o questionário composto de dez perguntas, sendo sete de resposta obrigatória e três optativas, que podem ou não ser preenchidas, permanece eivado de questões que envolvem sua legitimidade, problemas relacionados ao princípio da transparência, desrespeitos à Lei Geral de proteção de Dados, dentre outros. Ainda que a secional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil tenha feito um parco conjunto de justificativas para sua realização na qual destaca que o objetivo é o aprimoramento, ampliação, setorização e individualização dos serviços prestados à Advocacia, o que se nota, na prática, são continuados desrespeitos à própria classe. Hoje destacaremos o Censo e a questão das mulheres, mas, preliminarmente, precisamos tratar dos erros, dos vícios, do tema da segurança e do respeito à Lei Geral de Proteção de Dados.

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Há que se destacar que a OAB/SP não tem a expertise para fazer um censo, apesar de não haver nenhuma restrição para a realização deste. Porém, fatores basilares como a lhaneza, o cuidado redacional, evitar questões de rol taxativo quando não há tal possibilidade, além disso, respeitar as normas que envolvem a Lei Geral de Proteção de Dados fazem parte do conjunto de fatores que devem ser observados pela entidade em decoro e alinho com seus componentes sejam estagiárias, estagiários, advogadas ou advogados.

E quando há flagrante desrespeito ao mínimo, as dúvidas exsurgem. A primeira delas é a obrigatoriedade ou não dos profissionais inscritos na secional paulista em responder ao questionário. Toda pesquisa, para alcançar os objetivos aos quais se predispõe, deve ser anônima, transparente e voluntária. No entanto, seja por falha redacional ou não, a entidade deixa claro que o questionário DEVE ser respondido até o final de junho de 2021, mesmo não apresentando qualquer penalidade em caso de descumprimento, o que possibilita uma faculdade, porém, há um notório constrangimento para o preenchimento dele.

Não há qualquer suporte jurídico que balize a secional bandeirante em obrigar seus inscritos em responder a um Censo. E a entidade pode alegar que se trata de uma faculdade, todavia, com a presença em duas ocasiões distintas do imperativo DEVE, a liberalidade dá azo a uma obrigação.

Fora isso temos a questão do anonimato, porque a entidade em sua exposição de motivos deixa claro e explícito até que: "o armazenamento dos dados coletados e respectivas bases serão armazenadas pelo Departamento de Tecnologia da Informação e Transformação Digital da OAB/SP, vinculada à Tesouraria, que garantirá a anonimização dos dados pessoais, a confidencialidade e a segurança da informação". Em que pese a previsão e a suposta consonância com a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n° 13.709/18), não há nenhuma explicação de quem terá acesso ou será responsável dentro do setor, se o tesoureiro ou demais funcionários poderão acessar a base de dados? Como será feito o controle e a segurança das informações? E quais as medidas, inclusive para evitar possíveis fraudes ou, até, a comercialização indevida desse banco de dados? Como fica a proteção efetiva dos membros da secional paulista? A exposição de motivos é silente a todas essas indagações, aliás, faz algo pior ao mencionar no campo finalidade que: "adotará, sempre que possível, a anonimização dos titulares dos dados". E quando não for possível? Há alguma previsão? Como ficam a honra, vida privada e intimidade da(o) entrevistada (o)? A resposta é o silêncio.

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Em nosso entendimento, o Censo da advocacia teria como objetivo central compreender as características principais de seus membros para melhor prover serviços à classe. De tal sorte que diante de uma pandemia com consequências gravosas a toda a população causa espécie não haver nenhuma pergunta acerca dos efeitos do COVID-19 na rotina laboral dos entrevistados.

Em uma sociedade na qual 47 milhões de pessoas não têm acesso à internet seria de bom tom a OAB/SP questionar sobre a infraestrutura das residências dos profissionais do direito. Isso apenas com um exemplo singelo, no entanto, quando o Censo trata das mulheres o despautério se evidencia.

O Censo se preocupa em perguntar duas coisas especificamente às mulheres: a questão 5: você tem filho (a)(s)? Se a resposta for afirmativa, há nova pergunta, agora, sobre a faixa etária, e, posteriormente, ainda outras duas: se a maternidade/paternidade é exercida de maneira adotiva, biológica ou socioafetiva. E, por fim, se é exercida em conjunto ou de maneira solo. Ademais, na questão 8 se infere qual a orientação sexual da entrevistada.

Em ambas as questões temos problemas constitucionais com flagrantes violações à intimidade e à vida privada, desrespeito ao artigo 227, §6° da Constituição Federal de 1988, ao indagar a "procedência" dos filhos. Para o fornecimento de algum serviço não haverá distinção para adotados, socioafetivos ou biológicos, portanto, um ato discriminatório que invade a privacidade e constrange a vida privada das entrevistadas. Outro detalhe: a pergunta é obrigatória, por conseguinte, não há como se imiscuir da resposta.

Sobre o tema da orientação sexual, a entidade pode justificar que a pergunta não é obrigatória, porém, a questão em si não é acerca da compulsoriedade ou não da resposta, mas sim, sobre quais os interesses da secional paulista em saber as orientações sexuais das advogadas, advogados, estagiárias e estagiários? Qual o objetivo fulcral para melhorar a qualidade de serviços saber se alguém é heterossexual ou não? Qual o interesse de melhoria para a classe da orientação sexual? Como vemos, muitas perguntas e nenhuma resposta.

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Ao invés de se envolver em polêmicas evitáveis, a OAB/SP poderia promover perguntas relevantes para a classe, em especial às mulheres, sem se dirigir especificamente às mesmas, já que a pesquisa, em tese é anônima e sim motivar compreender as respostas a partir de perguntas dirigidas a homens e mulheres com direcionamento às mulheres. Afinal, a OAB aprovou por aclamação a paridade de gênero nas eleições da entidade, além da necessidade de 30% serem negros, o que evidencia a importância e a representatividade das mulheres nos quadros da advocacia. Em mais de dez estados elas já são a maioria dos inscritos, inclusive em São Paulo.

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A entidade, a casa da democracia e da defesa inconteste dos Direitos Humanos perdeu a oportunidade de reconhecer e destacar a importância da mulher, inclusive na advocacia. Nos dias atuais ser mulher representa ter de enfrentar preconceitos, violência, desrespeitos de toda sorte, para muitas uma jornada acumulada de trabalho que se multiplicou na pandemia com os filhos e marido ou companheiro em tempo integral na residência, com as tarefas domésticas terem de ser harmonizadas com as obrigações laborais, as dificuldades de um home office inesperado, as possibilidades de falta de ambiente adequado para tal etc. Todavia, para muitas, também significa ter uma vantagem competitiva em relação aos homens já que possuem uma gentileza natural, intuição, um olhar periférico, capacidade de liderança e a possibilidade de defender os direitos das demais mulheres, de combater o preconceito, os maus tratos, lutar pela paridade de gênero e pelo fim do machismo.

Para fins de um Censo seria preponderante saber qual a percentagem da mulher no mercado de trabalho jurídico, se ela possui respeito por parte das entidades e do Estado para o livre exercício de sua atividade laboral. Será que a OAB/SP sabe como as mulheres são tratadas nos tribunais e delegacias ao longo do Estado? Será que a entidade poderia auxiliar às advogadas e estagiárias para contribuir para a diversidade na liderança? Quais as dificuldades dos escritórios capitaneados por advogadas?

Ademais, será que as mulheres negras possuem respaldo da OAB/SP em temas como o racismo estrutural? Será que apenas e tão somente perguntar sobre a cor dos entrevistados no Censo é suficiente? O ambiente de trabalho, o machismo, o assédio moral ou sexual, o acossamento das estagiárias e advogadas, são temas que poderiam ter sido mais aprofundados na pesquisa, porém, uma vez mais falha a principal casa da advocacia do Brasil em não reconhecer os avanços e conquistas das mulheres nos últimos anos na sociedade brasileira e houve uma perda irreparável para a advocacia bandeirante quando sua entidade não acompanha tais conquistas.

*Antonio Baptista Gonçalves é advogado, pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela, pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP, pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza. Doutor e mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra, especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra. Pós-graduado em Teoria dos Delitos - Universidade de Salamanca, pós-graduado em Direito Penal Econômico e em Direito Tributário pela FGV, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Filosofia pela PUC/SP

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