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Caso boate Kiss e a vontade de criar um direito penal democrático sem povo

Por Leonardo Augusto de A. Cezar dos Santos e Rodrigo Monteiro
Atualização:
Júri da Boate Kiss. FOTO: JULIANO VERARDI/TJRS Foto: Estadão

Intelectual ungido é uma expressão cunhada pelo economista norte-americano Thomas Sowell. Na sua obra Os intelectuais e a sociedade, o autor deixa claro como a opinião dessa elite intelectual destoa da realidade e se mostra monopolizadora das virtudes. Assim, todos que são contrários às ideias defendidas por esses ungidos, são demonizados, uma vez que houve discordância com o pensamento elevado, nobre e salvador.

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Nos últimos dias as redes sociais foram bombardeadas com a "opiniões" de "intelectuais ungidos" a propósito do julgamento do caso "Boate Kiss".

Muitas "opiniões" lançadas por quem não conhece o processo (nós também não conhecemos e, por óbvio, não falaremos sobre o mérito da decisão) foram acompanhadas por valorações subjetivas de quem entendeu não ter havido dolo eventual, mas sim culpa consciente, ou mesmo inexistência de qualquer responsabilidade por parte dos réus.

Não custa lembrar que à luz do artigo primeiro da nossa Carta Magna, "todo o poder emana do povo" e o julgamento dos crimes dolosos da vida é uma forma de exercício direto de poder pelos verdadeiros soberanos: o povo!

No âmbito do Poder Judiciário não existe nada mais democrático do que o Tribunal do Júri. No plenário do Júri temos o julgamento do povo (o réu), pelo povo (os jurados) e na presença do povo (os expectadores). A isso, dá-se o nome de democracia!

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Destaca-se que o julgamento pelo Tribunal do Júri é precedido de diversos filtros que se prestam a impedir que "qualquer coisa" chegue ao conhecimento do Conselho de Sentença.

Uma vez praticado o crime cabe à autoridade policial, após à devida investigação, arquivar o Inquérito Policial ou indiciar aquele sobre o qual foram alcançados indícios de autoria e materialidade (FILTRO 01).

Recebido o Inquérito Policial pelo Ministério Público cabe ao respectivo membro solicitar novas diligências, arquivá-lo ou oferecer denúncia (FILTRO 02).

Oferecida a denúncia o magistrado poderá rejeitá-la ou recebê-la (FILTRO 03).

O ato de recebimento da denúncia é irrecorrível, mas sujeito à contestação por meio de habeas corpus (FILTRO 04).

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Após o fim da instrução processual, com a produção de todas as provas, os autos são encaminhados ao Ministério Público, que poderá requerer a absolvição, a desclassificação, a impronúncia ou a pronúncia (FILTRO 05).

Recebidas as alegações do Ministério Público e da defesa, o magistrado poderá determinação a absolvição, a desclassificação, a impronúncia ou a pronúncia do réu (FILTRO 06).

Da decisão de pronúncia caberá recurso em sentido estrito ao Tribunal de Justiça (FILTRO 07).

Da decisão do Tribunal de Justiça caberá Recurso Especial ao STJ (FILTRO 08).

Uma vez transitada em julgado a decisão de pronúncia os autos são submetidos ao Tribunal do Júri, que decidirá de acordo com as provas dos autos (FILTRO FINAL - por enquanto).

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Perceba, caro leitor, que antes de chegar ao conhecimento do Tribunal do Júri o processo foi submetido a quase uma dezena de filtros e passou pelos crivos de várias autoridades legitimamente constituídas.

Os jurados podem errar, já que são humanos, mas, para isso, há os recursos cabíveis. No entanto, estariam todas essas autoridades e o próprio Conselho de Sentença equivocados ao reconhecer a existência do crime do homicídio contra as 242 vítimas fatais? Apenas as defesas e os "intelectuais ungidos" estão de mãos dadas com a virtude?

Existe uma teoria da conspiração arquitetada com o propósito único de aniquilar a vida dos réus? Estaria ocorrendo uma sucessão de erros? Estariam todas essas autoridades movidas pelo sentimento de vaidade e busca desenfreada por holofotes? Seriam todos idólatras do cárcere e da mera vingança?

E nesse "prende e solta" em que se transformou esse processo, algo é indiscutível: a credibilidade da Justiça está sendo internamente implodida, algo que não é bom para as vítimas sobreviventes, para as famílias das vítimas falecidas, para os réus e, sobretudo, para a sociedade brasileira.

Enfrentamento ideológico, ao analisar esse caso rumoroso, é um desprezo à Justiça e desrespeito à vontade do povo. É uma espécie de arrogância intelectual em acreditar que o povo não tem condições de compreender a realidade em que vive em nem os ditames da Justiça. Lembrando que os jurados são selecionados entre pessoas com notória idoneidade. O ideólogo tem repulsa a analisar a realidade fora das suas lentes, uma vez que sai de seu paraíso confortável e hermeticamente fechado às ideias diferentes.

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Ter um Direito Penal democrático, mas sem levar em consideração a vontade do povo faz parte desse paraíso.

Querem manipular a realidade para esconder o real objetivo de instrumentalizar a impunidade e a injustiça.

Querem rotular a punição como algo ruim. Querem jogar a opinião pública contra a vontade do povo - concretizada pela decisão dos jurados - a fim de continuarem no seu paraíso confortável, no Olimpo.

Pelo que consta, o artigo 492, I, "e", do Código de Processo Penal, que trata da execução provisória da pena nas decisões condenatórias no Tribunal do Júri não foi declarado inconstitucional. Em sendo assim, a lei tem presunção de constitucionalidade e, consequentemente, o contrassenso é haver a liberdade de réus de forem condenados a uma sanção igual ou superior a 15 anos de reclusão.

Saindo da seara técnica e da arena dos "intelectuais ungidos", o contrassenso maior é para o imaginário popular. Há um júri de vários dias, em que os réus são considerados culpados das acusações por decisão que está de acordo com a Constituição, as leis e a soberania do povo. No entanto, todos os réus saem em liberdade, mesmo tendo a prisão decretada pelo juiz. Não é tarefa fácil explicar isso aos jurados, legítimos representantes do povo?

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Para que a Justiça tenha credibilidade, é importante que seja respeitada a vontade popular, seja a vontade dos jurados, seja em respeito às leis que não foram declaradas inconstitucionais. Com isso, para que não caminhemos rumo à barbárie e ainda tenhamos um fio de esperança na Justiça, só nos resta lembrar o alerta feito pelo jurista francês Georges Ripert: "Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito".

Deixemos a ideologia de lado, passemos a analisar os fatos de acordo com os ideais de Justiça e respeitemos a vontade do povo!

*Leonardo Augusto de A. Cezar dos Santos é Mestre em Estratégias Anticorrupção e Políticas de Integridade e Doutor em Estado de Direito e Governança Global, ambos pela Universidade de Salamanca/Espanha. Pesquisador visitante no Centro Judiciário Federal, em Washington D.C., EUA; membro da Associação Internacional de Promotores de Justiça (International Association of Prosecutors); promotor de Justiça Titular do Tribunal do Júri da Comarca de Vitória (ES).

*Rodrigo Monteiro é doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global (Universidad de Salamanca, Espanha); Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (Faculdade de Direito de Vitória - FDV); especialista em Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo (Universidad de Salamanca, Espanha); professor; promotor de Justiça Titular do Tribunal do Júri da Comarca de Vitória (ES)

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