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Canetas que matam

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Por Silvia Regina Becker Pinto
Atualização:
Silvia Regina Becker Pinto. FOTO: ÉVERTON ROSA Foto: Estadão

A morte de dois policiais militares, os soldados Marcelo de Fraga Feijó e Rodrigo da Silva Seixas, em combate, na última quinta-feira (28/6), em Porto Alegre, trouxe luto para suas famílias e amigos, para o 19.º BPM, onde estavam lotados. Mas, para além da comoção e da incredulidade que marcaram o velório e o enterro de ambos, para mim, não apenas como promotora de Justiça aposentada há menos de 30 dias, (com experiência de mais de 20 anos no Tribunal de Júri), mas, também, como jurista e, em especial, como cidadã, o episódio está a exigir uma profunda reflexão sobre a atuação das "autoridades que têm o poder da caneta" e o "dever de garantir segurança", direito catalogado como fundamental de todos e de cada um, no bojo do artigo 5.º, "caput", de nossa Lei Fundamental.

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Cada época tem sua própria neurose coletiva. No âmbito jurídico-político, atualmente, ela se materializa no debate entre o desarmamento (como se bandido usasse arma regularizada, e como se, se flexibilizada tal política, qualquer um (inclusive o bandido) pudesse comprar uma no boteco da esquina, sem formalidades, sem se submeter a rígidos testes psicológicos, de conhecimento sobre a funcionalidade e manejo de armas, e práticos (prova de tiro; também, na na "neura" da política de desencarceramento, ora assentada no mito de que o Brasil prende demais (e isso não é verdade: basta acessar link do o Banco Nacional de Mandados de Prisão no site do CNJ para vermos quantas mil pessoas deveriam estar presas e não estão, para ficar no menos), ora para justificar a ausência de investimento em políticas públicas para albergar quem deveria estar preso e não está, ou está falaciosamente preso, com tornozeleira eletrônica, não apenas falhas e sem controle efetivo, mas os marginais de há muito aprenderam a driblar, ou colocando o desviante na condição de vítima da sociedade, como causa exógena de justificação do crime, sem considerações e escolhas e de caráter.

A neurose coletiva do desencarceramento, espantosa e inaceitavelmente, se pauta por uma idolatria da liberdade de quem faz do crime seu meio de subsistência, assim como se identifica pelo niilismo em relação à vida de inocentes, ao direito das vítimas. Ela também e especialmente matou os soldados Marcelo de Fraga Feijó e Rodrigo da Silva Seixas. Matou. Não matou com arma. Matou com a caneta, e não me venham se demitir dessa responsabilidade. É dizer, os que atiram e mataram diretamente os PMs acima foram marginais que atuavam em organização criminosa, voltada para o narcotráfico, na região onde Marcelo de Fraga Feijó e Rodrigo da Silva Seixas adentraram, no estrito cumprimento do dever legal de garantir a todos nós segurança, e foram ali abatidos. Um deles, o que criminoso que foi preso, tinha condenação de oito anos de reclusão por homicídio; havia pouco mais de mês que tinha progredido de regime e possui três processos de tráfico. Mesmo nesse quadro, recebeu, salvo melhor informação, do TJRS, por ação da caneta, um "habeas corpus", e foi colocado em liberdade. Independente da exatidão da informação processual, está correto deixar uma pessoa com esse histórico criminoso em liberdade? Acaso os desviantes monopolizaram a titularidade de direitos humanos e os inocentes não?

Hoje, aqui falando topicamente na questão de violência e criminalidade, na melhor paráfrase da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa da Silva, nós nos sentimos exilados em nosso próprio país. A violência do crime organizado venceu a indiferença displicente dos ditos poderes constituídos".

Estando em pleno acordo com a médica, e sendo defensora da liberdade legítima, penso que esse tema do desencarceramento indiferente às vítimas precisa ser debatido sob um verdadeiro aspecto democrático e social, e não como um coitadismo ou como uma sanção (cuja conta direta quem paga com a própria vida são as vítimas inocentes) pela irresponsabilidade administrativa na construção de presídios. Canetas que salvam e que, tantas vezes, poderiam salvar, acabam matando tanto quanto as armas, quando usadas para soltar criminosos que não reconhecem a humanidade de ninguém.

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*Silvia Regina Becker Pinto, promotora de Justiça aposentada e cidadã em busca eterna da justiça

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