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Cadê meu carnaval?

Por Rodrigo Vieira
Atualização:

Rodrigo Vieira. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Há dois anos, neste período do ano, me pego na pia lavando louças, escutando minhas playlists favoritas 1 de marchinhas, frevos, sambas, maracatus, batuques, afoxés e axés. Minha cabeça é Olindance 2, ladeiras, fantasias, bloquinhos, confetes e serpentina. A câmera recua e registra um sujeito triste, amuado, no seu infinito particular, esfregando a esponja ensaboada em pratos, esboçando uma batucada em talheres, enquanto a companheira se compadece rindo do luto pandêmico. É desolador. E a Quarta-Feira de Cinzas nem chegou.

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A canção de Geraldo Azevedo (1977) parece servir para sonorização da cena, a psicodelia do seu primeiro álbum solo com homenagens à cultura afro-brasileira, questionando profeticamente "Olê Iê Iê Cadê meu carnaval? O carnaval está morrendo. Cadê meu carnaval?". 3

Enquanto faço a mesma pergunta de Geraldo Azevedo pelo segundo ano seguido, noto nos stories do Instagram o perfil de portugueses e brasileiros curtindo um bloco de carnaval na bela Lisboa. A recomendação da página do coletivo que organiza o bloco diz: use máscara. E é só. Por lá também já sinto o cheiro de sardinhas na brasa nas Festas dos Santos, nossas festas juninas. Segundo os dados da Direção-Geral da Saúde 4, cerca de 90% da população portuguesa tem hoje o esquema vacinal completo. Mais de 5,8 milhões pessoas receberam a dose de reforço da vacina contra a Covid-19.

Apesar do avanço da vacinação no Brasil, a Ômicron não tem nos dado trégua em várias regiões. A incerteza e a imprevisibilidade já tinham tomado conta da atenção dos gestores estaduais e municipais no Réveillon e o medo continuou povoando carnavalescos, trabalhadores da cultura e foliões. Desde o final do ano passado, na mesa os riscos do carnaval. Vai ter carnaval? Não vai ter carnaval? O carnaval, olhando de um lado para outro, emparedado pela Covid-19, aflito com o receio de todo influencer: o cancelamento.

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Sambódromo do Anhembi, em São Paulo. FOTO: WERTHER SANTANA/ESTADÃO Foto: Estadão

Em numerosas cidades e Estados, governantes se apressaram em proibir festas públicas de carnaval na rua, suspender editais de incentivos a blocos de rua e escolas carnavalescas, em alguns casos jogá-lo para junho - um antropofágico carnajunino em tom de comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna - até o despautério de tentar suprimir o feriado, pois quem trabalha não faz festa (como se realizar um evento popular dessa envergadura não desse/fosse trabalho; para a ética workaholic neoliberal faz até algum sentido). Na segunda quinzena de fevereiro, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) realizou pesquisa 5 respondida por mais de duas mil cidades; em 46% desses entes federados não haverá nem festas públicas e nem privadas no carnaval.

Em análise aos dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) 6, isso representa uma perda de quase R$ 3 bilhões na economia brasileira em relação ao ano de 2019, mas o carnaval atípico, ainda assim, deve movimentar pouco mais de R$ 6,4 bilhões em receitas.

Mas peraí, enquanto verifico dados e escrevo este artigo, me aparecem mais stories de colegas de outras cidades do país, mas também de Fortaleza, com um "vejam a lista dos principais eventos no Rio, São Paulo, Recife, Salvador etc.". Ué vai ter ou não Carnaval? Segundo a pesquisa da CNM citada acima, quase 25% dos municípios entrevistados cancelaram os festejos públicos, mas mantiveram a possibilidade dos privados. Nessa hora, me veio à mente, a pergunta anterior que tinha me feito antes de aceitar como um dado o cancelamento: Que carnaval seria possível com a Covid-19?

Estamos a lidar com a variante mais transmissível que conhecemos da doença que nos assombra cotidianamente. Onde há risco, há medo. Para alguém que apoia e sempre apoiou medidas sanitárias eficazes que acompanham as mudanças de comportamento do próprio vírus é natural pensar que o cancelamento do carnaval era fatídico, dado consumado. Com tantas variantes e doenças virais à solta, de fato, fica difícil pensar na pergunta sobre que carnaval seria possível.

Ao me deparar com esses números e notícias de que os grandes centros urbanos, pelos quais o carnaval brasileiro é mundialmente conhecido, permitiriam festas privadas, imediatamente percebi que estava fazendo o questionamento errado. Parece que a Ômicron é só problema de alguns. Então, neste momento, a pergunta certa é: Carnaval para quem?

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Esta interrogação não é nova nos campos das políticas culturais e da economia criativa para quem acompanha celebrações populares, no caso talvez a maior do mundo. A solução encontrada para enfrentarmos a variante da Covid-19 não está amparada apenas por uma questão de precaução e prevenção sanitária.

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Apesar do caráter, em grande medida, popular da festa, o carnaval não nasce da geração espontânea da boa vontade, alegria e disposição de centenas de milhares de pessoas que decidem ir se divertir na rua de acordo com o calendário momino, ser um Outro que o cotidiano e a sociedade o impedem de ser, criar fantasias, desejos, ilusões, abandonar qualquer vestígio de um sagrado e se entregar aos ilimitados prazeres mundanos, ou mesmo curtir o bloquinho só por curtir. Que existe direito à folia 7, direito cultural de acesso, liberdade de expressão cultural e artística, todos envolvidos no gozo da festa, não há dúvidas.

Contudo, o carnaval é palco de tensões e contradições sociais e políticas que encontram seu ponto de ebulição exatamente onde esperamos encontrá-lo, nas ruas. Sua existência, ainda que momentânea, é resistência e afirmação de muitas vozes e expressões que criam roturas no disciplinamento e na domesticação do espaço urbano. "Lá vem o Brasil descendo a ladeira", cantaria o grande Moraes Moreira.8

É uma garantia, naquilo que David Harvey 9 estabeleceu como direito à cidade, para o exercício coletivo de algo do bem comum partilhado culturalmente por milhões de pessoas, cuja sobrevivência se coloca contra a ocupação de territórios e espaços meramente para fins de mercantilização urbana. Há, ao mesmo tempo, produção e fruição de bens culturais em campo minado. É um daqueles raros momentos da vida coletiva nacional em que há envolvimento e elos comunitários numa celebração, embora haja muitas configurações diversas de organizações, sentidos e ritmos pelo país. Há carnavais de rua, de clubes, de praia, no sambódromo, entre outros.

Nesse sentido, o carnaval incomoda muita gente. É certo que o seu simbolismo, o caráter popular, o sagrado e profano a um só tempo, o peso da contra-hegemonia disruptiva da normalidade, sempre estiveram em disputa. Contudo, não é novidade que, mais recentemente, com os avanços dos discursos de ódio e da intolerância religiosa e política, empunhados por cargos de direção estratégicos das principais cidades onde ocorre a festa com maior visibilidade e adesão, há instrumentalização do próprio direito para restringir ou limitar o caráter popular da festa. Isso sem falar na cruzada moralizante por parte de setores religiosos extremistas contra o carnaval.

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Os expedientes são muitos: controle urbano, organização do trânsito, vigilância sanitária, segurança pública, fiscalização do cumprimento do objeto em editais de incentivo 10, entre outros. Quem no mundo ideal poderia dizer que isso é ruim para os cidadãos-brincantes? Porém, o deserto do real aponta para práticas de coerção disciplinadoras para o encaixe de um padrão privado de mercantilização do espaço público, no qual patrocinadores e empresas de publicidade e marketing são quem ditam as regras, através principalmente das tais parcerias público-privadas. Carnaval não é só entretenimento, sinto informar.

Apesar de aparentar certa obviedade, essa lógica alcança a gestão pública da cultura em matéria de apoio e fomento à realização principalmente do carnaval de rua. No entanto, quem não valsa com o lucro ou com a estrutura de megaeventos, pouca chance ou, pelo menos, muitas dificuldades enfrentará para cantar com Sérgio Sampaio "eu quero é botar meu bloco na rua...".11 É difícil nesse cenário falar de transmissão intergeracional de tradições culturais ou falar de liberdade, resistências.

Já podemos sentir os efeitos deletérios disso com a demissão dos municípios da responsabilidade sobre a gestão participativa do carnaval, com diminuição ou suspensão de recursos públicos de fomento, atraso no repasse de verbas com destinação específica para a festa ou no pagamento de artistas e atrações - neste último caso, é frequente a atribuição da culpa exclusiva à informalidade e às irregularidades administrativas dos agentes culturais.12

Outro aspecto esquecido é a compreensão do carnaval dentro de uma economia da festa. Quer dizer, as cifras das pesquisas anuais sobre turismo e hotelaria poderiam até ser suficientes para agrado dos gestores públicos e empresários, mas é insuficiente se não olharmos para o fluxo dessa cadeia, suas diferentes formas de se organizar, e a importância e envolvimento de vários tipos de trabalhadores formais e informais na realização do evento. Existe uma economia da festa da qual, sobretudo nas cidades brasileiras que são vitrine do carnaval mundo afora, muitos grupos, famílias e comunidades dependem material e simbolicamente.

Não vou nem falar que cada região tem suas tradições, desfiles, ritmos e sons. Alguns/umas se preparam e se organizam o ano todo para que, em menos de uma semana, outras pessoas possam se esbaldar, ficando melancólicas na Quarta-Feira de Cinzas porque só no próximo ano tem mais, sem falar dos ganhos e do comércio (in)formal indireto gerados.

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Essa lógica do controle urbano que atende à mercantilização do carnaval de rua, inclusive, se transfere a esses trabalhadores como ônus. Taxas, requisições burocráticas, autorizações, licenças, imposição da exclusividade no comércio de marcas e produtos, todas elas exigências excessivas e abusivas muitas vezes. Na cadeia de criação, produção, distribuição, circulação e usufruto dos bens e serviços gerados pelo carnaval, encontramos diversos trabalhadores com papéis distintos. No atual contexto pandêmico, encontramos entre os mais afetados com o cancelamento do carnaval os informais, trabalhadores dos barracões de blocos e escolas, terceirizados de serviços de turismo e hotelaria, roadies, ambulantes, feirantes e camelôs em particular.

Enquanto pela Lei Aldir Blanc era possível Estados e municípios socorrerem trabalhadores culturais do ciclo carnavalesco por meio da renda emergencial 13, as políticas de auxílio e renda básica voltadas igualmente para o backstage capitaneado por ambulantes em geral eram praticamente insuficientes, quando não assumidas exclusivamente pelos patrocinadores dos grandes carnavais. Uma política cultural estruturada e organizada em indicadores e avaliações tinha de ter tudo isso na ponta do lápis - ou em planilhas e estatísticas - para lidar com esses tempos de exceção e não deixar a galera na mão. O Carnaval não pode ser somente dos Reis do Camarote. Por outro lado, é extremamente contraditório deixar rolar carnavais privês com covid free, sem observação das normas básicas sanitárias, sabendo que trazem a mesma insegurança que justifica o cancelamento das festas de rua do povo.

Todavia, podemos voltar a uma das perguntas iniciais reformulando-a: qual carnaval popular então será possível? No Relatório Técnico "Vai ter Carnaval?" da "Comissão Especial com a finalidade de analisar a relação e as responsabilidades entre o Poder Público municipal e o Carnaval" da Câmara Municipal do Rio de Janeiro 14, publicado em dezembro de 2021, médicos da Fiocruz e da Universidade Federal do Rio de Janeiro apontaram indicadores para a capital carioca para que fosse possível um carnaval seguro.

Os indicadores podem nortear outras localidades. As orientações 15 dadas pelos especialistas levam em consideração os avanços da taxa de vacinação no país, no Estado e no município a níveis de 80% de imunidade coletiva (a indicação tem por base a variante Delta do SARS-CoV-2); taxa de contágio na cidade; porcentagem de diagnósticos de testagem; tempo de espera e quantidade de casos de síndrome respiratória aguda na fila de internação e médias de atendimento na rede municipal de saúde. Além disso, traçam relevantes considerações sobre a importância do passaporte vacinal em espaços fechados ou de frequência coletiva. Como o objetivo é salvar vidas, não as perder ainda mais, os médicos advertem que, embora tenha de se observar os indicadores, é dever da sociedade discutir a realização ou não do carnaval, sopesando seus riscos, mas também os benefícios, que não tem natureza apenas econômica.

Fica a nossa esperança de que o fim da pandemia esteja perto. Por ora, aguardamos um carnaval realmente seguro no próximo ano, cujas únicas preocupações pós-imunização sejam fantasias, músicas e beijos apaixonados. Espero que isso não se prolongue por mais do que esses dois anos e que possa ver o Maracatu ainda na rua, os blocos de Olinda, Recife e do Rio, afinando antes o passo no pré-carnaval de Fortaleza.

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*Rodrigo Vieira, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFERSA,  coordenador do Curso de Direito da mesma instituição e membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais - IBDCult

(1) Escutem aqui: https://open.spotify.com/playlist/2YPGcXUYtpOGuutUvaVLRR?si=483a8c979e9b4fbd; https://open.spotify.com/playlist/714MOC3s1ITutPkeYUBbsR?si=3186f8c4b997483d; https://open.spotify.com/playlist/6SYiygUZEmSfLtX6K6Xeng?si=6b633f1686334d1c;https://open.spotify.com/playlist/6CyOCGdae9tnYNWqXrQ2JC?si=63fefa0a90df473f.

(2) Álbum do Academia da Berlinda. Para ouvir, acessem: https://www.youtube.com/watch?v=AvYBejySEjQ.

(3) Para ler com a trilha sonora, acessem: https://www.youtube.com/watch?v=STftG06UP5Q.

(4) DGS. Vacinação em Portugal. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/noticias/2022/02/22/vacinacao-em-portugal/. Acesso em: 22 fev. 2022.

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(5) CNM. Pesquisa CNM - Covid-19 - Edição 35ª - de 14 a 17/02. Disponível em: https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/Pesquisa_Relampago_Ed_35.pdf. Acesso em: 24 fev. 2022.

(6) CNC. Carnaval de 2022 deve movimentar 33,7% menos em serviços do que antes da pandemia. Disponível em: https://portal-bucket.azureedge.net/wp-content/2022/02/eeafbc10024fcdf45050b8a9dcd66d0c.pdf.  Acesso em: 24 fev. 2022.

(7) Ferreira, Juca; Varella, Guilherme. Direito à folia. 16 fev. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/direito-a-folia.shtml. Acesso em: 22 fev. 2022.

(8) Siga o ritmo, ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=T-G3WwWkTl0.

(9) Harvey, David. O direito à cidade. In. Revista Lutas Sociais, n. 29, jul/dez. 2012. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/18497. Acesso em: 20 fev. 2022.

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(10) Para melhor compreender como a regulamentação de eventos no espaço público pode controlar a produção cultural de expressões culturais populares, ver o caso do Rio de Janeiro na dissertação de Mestrado de Toledo, Bianca. Rimo, logo existo - A resistência das Rodas Culturais na luta pelo Direito à Cidade. Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. 2019. 248p.

(11) Siga o bloco, vá escutando aqui: https://youtu.be/ADvoOb0VHtg.

(12) Pinheiro, Victória; Manoel, Jones. A luta de classes em torno do Carnaval. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/02/16/a-luta-de-classes-em-torno-do-carnaval/. Acesso em: 23 fev. 2022.

(13) Art. 2º, inciso I, da Lei n. 14017, de 19 de junho de 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.017-de-29-de-junho-de-2020-264166628 Acesso em: 23 fev. 2022.

(14) Motta, Tarcísio; Benicio, Monica et. al. Vai ter Carnaval? - Relatório Técnico da "Comissão Especial com a finalidade de analisar a relação e as responsabilidades entre o Poder Público municipal e o Carnaval". dez. 2021. Disponível em: https://tarcisiomotta.com.br/wp-content/uploads/2021/12/Relatorio-Carnaval-2021-Versao-Digital-02.pdf. Acesso em: 24 fev. 2022.

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(15) Motta, Tarcísio; Benicio, Monica et. al. Op. cit. p. 112-120.

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