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Breves notas sobre a democracia e o afastamento do governador Wilson Witzel

Por Daniella Meggiolaro e Pollyana de Santana Soares
Atualização:
Daniella Meggiolaro e Pollyana de Santana Soares. Foto: Divulgação

O afastamento do Governador do Estado do Rio de Janeiro Wilson Witzel por decisão monocrática e liminar do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Benedito Gonçalves em procedimento de investigação criminal é um exemplo de como o Poder Judiciário vem se valendo, com certa frequência, de uma espécie de carta coringa no jogo democrático brasileiro. 

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Os fatos imputados são preocupantes, não há dúvida. Em meio a um cenário catastrófico de pandemia, a acusação da utilização dos escassos recursos públicos em benefício próprio e de parceiros políticos é gravíssima. Acontece que o sujeito a quem são atribuídos esses fatos foi eleito por mais de quatro milhões de votos e está - ou ao menos estava - em pleno exercício de seu mandato, além de recair em seu favor a presunção constitucional de inocência. A acusação, até agora, não passa de uma tese que ainda será enfrentada à luz da ampla defesa e do contraditório judicial. 

É bem verdade que o art. 319, VI, do Código de Processo Penal prevê a possibilidade de decretação da medida de suspensão do exercício de função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais, mediante expresso requerimento do Ministério Público e sempre observados os requisitos específicos da cautelaridade. O que a legislação processual penal, porém, não diz expressamente é se o cargo eletivo se inclui na categoria "função pública" e, assim, se pode também ser cautelarmente suspenso durante uma investigação criminal (o que é expressamente vedado, por exclusão, nas legislações italiana e portuguesa). 

Esse ponto é nevrálgico e não se trata de mera firula jurídica. A depender da interpretação que se dá a este dispositivo de lei, permite-se ou não ao magistrado a suspensão do mandato de um membro do Poder Executivo, eleito e no exercício do cargo, sem que haja a necessidade de aprovação da Casa Legislativa correspondente. Caímos, mais uma vez, na inatingível complexidade da separação, "independente e harmônica", entre os Poderes.

Outro fator a ser considerado é o de que tanto a Constituição da República quanto a Constituição do Estado do Rio de Janeiro preveem um rito específico para o processamento e julgamento do Chefe do Executivo por crime comum (não de responsabilidade), com a necessidade de admissão prévia da acusação pela Casa Legislativa. Só depois do "aval" dos representantes eleitos é que seria possível a análise pelo Judiciário da denúncia que, se recebida, daria ensejo à suspensão do mandato. 

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O procedimento continua valendo para o Presidente da República, mas o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento diverso para os Governadores de Estado, no sentido de que "é vedado às unidades federativas instituírem normas que condicionem a instauração de ação penal contra governador, por crime comum, à previa autorização da casa legislativa, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça dispor, fundamentadamente, sobre a aplicação de medidas cautelares penais, inclusive afastamento do cargo" (ADIs 4798, 4764 e 4797). Segundo os Ministros do Supremo, não há simetria entre os Governadores e o Presidente da República (ADI 5540) e, por isso, o Judiciário continua tendo a prerrogativa de apreciar - do ponto de vista jurídico - a acusação contra o Governador, independentemente do déficit democrático, de maneira a assegurar o princípio republicano (art. 1º, caput, CRFB), a separação de Poderes (art. 2º, caput, CRFB) e a cláusula geral de igualdade (art. 5º, caput, CRFB). 

Com base nesse raciocínio, o dispositivo da Constituição Estadual do Rio de Janeiro que determina a necessidade de admissão da acusação de crime comum contra o Governador por dois terços dos Deputados foi considerado inconstitucional pelo Supremo em 2017, assim como foi entendido inadmissível, do ponto de vista constitucional, o caráter automático da suspensão do cargo pelo recebimento da denúncia contra o Governador (ADI 4772).

Não está sob análise, portanto, o conteúdo das acusações feitas ao Governado do Estado do Rio, mas sim a imposição da medida à luz da legislação vigente, especialmente se levarmos em conta o relevantíssimo fato de a Procuradoria-Geral da República ter pedido a prisão e não o afastamento do Governador. Ora, se a decretação da cautelar só se dá mediante expresso pedido, se a prisão requerida pelo Ministério Público foi indeferida e se o afastamento, com seus fundamentos fáticos e jurídicos, não foi sequer cogitado pelo órgão acusador, o que se conclui é que o Superior Tribunal de Justiça encontrou uma medida "intermediária" ao que fora requerido, decretando de ofício o afastamento do Governador, em afronta não só aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, mas em desrespeito ao sistema processual acusatório vigente.

De todos os Governadores eleitos pelo Estado do Rio de Janeiro desde a redemocratização, apenas dois, os já falecidos Leonel Brizola e Marcello Alencar, não foram envolvidos em escândalos criminais. Dos vices que assumiram o cargo em razão da renúncia dos titulares, somente Nilo Batista e Benedita da Silva mantêm sua biografia 100% imaculada. Parece difícil discordar, portanto, que o eleitor fluminense vota mal. Mas daí a aceitar que o Judiciário possa, por decisão singular, expurgar os equívocos democráticos do povo de um Estado da Federação há um enorme salto. 

Vejam, então, o paradoxo: Há intromissão excessiva do Judiciário no Executivo e Legislativo, se afastado o requisito de procedibilidade, pois apenas aos membros do Legislativo é conferida representatividade suficiente para afastar um membro eleito. Por outro lado, há também intromissão excessiva do Executivo e Legislativo no Poder Judiciário se aplicado o requisito de procedibilidade. Afinal, quem processa e julga, ordinariamente, é o Judiciário e não o Legislativo. 

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Dentre as regras do jogo democrático, a soberania popular exercida pelo sufrágio universal é uma das principais. Nossa jovem democracia continua a definir o que é aceitável e quais os limites de cada um dos players na mesa. Mas o coringa deste jogo, sem dúvida, continua nas mãos do Judiciário. 

*Daniella Meggiolaro, advogada criminalista, presidente da Comissão Especial de Direito Penal da OAB/SP e vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD.

*Pollyana de Santana Soares, advogada criminalista, especialista em Direito Penal Econômico, membra da Comissão Especial de Direito Penal da OAB/SP, integrante da Comissão de Amicus Curiae do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim e voluntária do Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD.

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