Juliana Vieira dos Santos, Paula Bernardelli e João Paulo Schwandner Ferreira*
30 de abril de 2019 | 05h00
Causou perplexidade, para dizer o mínimo, a manifestação do presidente da República, Jair Bolsonaro, alinhado com seu ministro da Educação, no sentido de que pretende reduzir os investimentos públicos em faculdades de filosofia e sociologia, sob o mesquinho argumento de que “o objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte”.
O objeto da filosofia e das ciências humanas, em geral, é, numa definição muito singela, a formação de uma base teórica e crítica que permita pensar livremente o que é o ser humano.
Não se trata de um fim em si mesmo. A construção do pensamento crítico tem resultados significativos, com repercussões práticas e diretas em todos os outros ramos do saber. Pensar o ser humano permite que políticas públicas sejam estabelecidas de acordo com as peculiaridades de cada povo, de cada região. Pensar o ser humano permite ao Judiciário tomar decisões que apresentem um maior senso de Justiça, para além de uma interpretação fria e burocrática da lei. Pensar o ser humano permite aos médicos compreender o contexto de cada paciente, tratando o indivíduo e não uma parte isolada de um corpo. Não por outro motivo que os primeiros filósofos eram também matemáticos, botânicos, biólogos, engenheiros, médicos.
O caráter civilizatório da filosofia e das humanidades traz uma carga ética para a tomada de decisões. E a história está cheia de exemplos do horror que a ciência pura pode se tornar quando se afasta do pensamento filosófico e nega a sua humanidade.
No Direito, que nos toca mais diretamente, o conhecimento de filosofia diferencia o profissional que consegue pensar soluções inovadoras para problemas complexos. Falando especificamente da advocacia, esvaziar o conteúdo filosófico e sociológico de uma profissão que se apresenta sempre tão formal é impedir a humanização do advogado.
Pensar o ser humano impõe uma visão crítica sobre o que é Justiça, o que é o direito, o que é a igualdade. Permite compreender a diferença fundamental entre a interpretação formal da lei e a interpretação capaz de trazer resultados sociais relevantes.
A última edição do prêmio Lúmen de boas práticas de gestão em escritório de advocacia contemplou, justamente, o projeto Quintas Filosóficas, um encontro para promover o debate de ideias. Isso demonstra que a valorização do livre pensar entre profissionais de áreas tidas como mais técnicas não é mera retórica. O pensar filosófico abre espaço para a criatividade, para uma investigação do mundo real que ultrapassa a opinião irrefletida do senso comum, para a consolidação de novas ideias e, em consequência, para a formação de profissionais capazes de transformar ativamente a realidade.
A filosofia, a todo tempo, se contesta, se reconstrói. É esse tipo de pensamento crítico que deve permear todas as áreas de conhecimento, combatendo sistematicamente visões retrógradas da realidade.
É por isso que a defesa das ciências humanas deve ser uma pauta coletiva.
Investigar o ser humano forma pessoas melhores, que se tornam melhores advogados, melhores médicos, melhores veterinários, melhores engenheiros… E é por isso, por tudo isso, que mais do que nunca, é preciso filosofar.
Numa sociedade civilizada é preciso haver espaço para a divergência. A multiplicidade de pensamentos é o que faz uma sociedade rica cultural e socialmente. Mas a liberdade de pensamento não aceita as ideias que seguem no sentido oposto, de restrição desses espaços. Não há lugar, portanto, para as ideias tacanhas que tentam justificar a “descentralização do investimento” na formação das ciências humanas, promovendo a aniquilação do pensamento crítico e caminhando na contramão do marco civilizatório.
Só a ignorância e o apego inexplicável ao obscurantismo justificam a rejeição do livre pensar e a percepção falha de que a filosofia é inútil.
*Juliana Vieira dos Santos, Paula Bernardelli e João Paulo Schwandner Ferreira são advogados, sócios do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.