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Banco de identificação genética e a lei anticrime

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Por Antonio Baptista Gonçalves
Atualização:
Antonio Baptista Gonçalves. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Lei n° 13.964, de 24 de dezembro de 2019, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro em 23 de janeiro de 2020, quando entrou em vigor e passou a produzir efeitos. A norma foi decorrente do Projeto de Lei n° 882/2019 que ficou conhecido como "pacote anticrime". O escopo principal foi a reforma do ordenamento penal brasileiro sob um viés repressor com claro endurecimento das normas penais existentes. Para tanto, catorze leis, dentre elas o Código Penal e Processual Penal foram alterados com a justificativa de otimizar a legislação.

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Não foi a primeira lei que investiu no endurecimento penal e, tampouco, será a última. O conceito que o país adotou, ao longo das últimas décadas, de que prender será a solução da criminalidade, quanto mais presos menor o desejo de delinquir. Desde a promulgação do Código Penal brasileiro até a Lei Anticrime tivemos mais de 180 leis penais. A figura do Direito Penal brasileiro de ultima ratio, isto é, a medida derradeira para impedir a impunidade, quando todos os outros meios falharam, passou a ser a prima ratio, dado o poder simbólico do Direito Penal. Em paripasso, o crime se organizou e estruturou, surgiram as facções criminosas e os negócios romperam as fronteiras estaduais e nacionais.

O Estado, então, investiu em mais violência e repressão, criou mecanismos opressores como a Lei dos Crimes Hediondos, o Regime Disciplinar Diferenciado e o Código Penal foi alterado muitas vezes ao longo das décadas. Não apenas para se adequar à realidade da sociedade, como também, para incrementar condutas e aumentar penas, em decorrência da repressão e do endurecimento. Nesta esteira foi criado o arcabouço normativo acerca do banco genético com a finalidade de melhor elucidar crimes com base na identificação criminal e na análise de DNA.

O banco genético é recente no ordenamento jurídico brasileiro, pois, foi introduzido com a Lei n° 12.654/12, apesar da identificação criminal já ser realidade alguns anos antes. Foi regulamentado pelo Decreto n° 7.950, de 12 de março de 2013 e o 9.817, de 3 de junho de 2019. Assim, sobre o banco genético, a Lei Anticrime não criou o dispositivo, apenas ampliou seu espectro, pois, o mesmo já era previsto na Lei de Execução Penal, além da Lei n° 12.037, de 1° de outubro de 2009 que dispõe sobre a identificação criminal.

A proposta do agora ex-Ministro da Justiça Sergio Moro era coletar 750.000 perfis genéticos até o final de 2022. Antes da Lei Anticrime somente o condenados por crimes hediondos e por violência grave eram obrigatoriamente submetidos à identificação do perfil genético, com extração de DNA.

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Com a chegada da Lei Anticrime, as possibilidades se aumentaram com a adição do artigo 7°-C, §4° na Lei n° 12.037, de 1° de outubro de 2009:

  • Poderão ser colhidos os registros biométricos, de impressões digitais, de íris, face e voz dos presos provisórios ou definitivos quando não tiverem sido extraídos por ocasião da identificação criminal (grifo nosso).

Agora todos os presos podem fazer parte do acervo disponível para as investigações. A diferença é que não poderá ser coletado o DNA, pois continuam restritos aos crimes hediondos e aos dolosos contra a vida, porém, as impressões digitais, íris, face e voz são estendidas a todos os presos.

A Lei Anticrime também inclui nessa coleta os presos provisórios, isto é, aqueles que ainda não foram julgados, o que significa que mesmo se absolvido suas impressões ficarão no banco de dados a menos que solicite judicialmente sua exclusão. Refletimos.

Não há dúvidas da necessidade de aprimoramento dos mecanismos investigativos criminais, inclusive a modernização dos mesmos. Desde que se respeite a Constituição Federal e os Pactos Internacionais aos quais o Brasil é signatário. A principal crítica a ser feita é não fazer do banco genético um banco de dados genéticos dos condenados para base informativa de suspeição criminal permanente.

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O pacote anticrime objetivava a identificação criminal de toda a população prisional brasileira, de maneira compulsória. Sobre o tema se manifestou o então coordenador da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Guilherme Jacques: "Era um incremento de talvez 200%. Era um grande incremento. Hoje são cadastrados cerca de 30% dos condenados. Com o pacote anticrime, 99% dos condenados seriam cadastrados com a redação que o Ministério da Justiça propôs. A Câmara não concordou com esse aumento".

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O objetivo precípuo de um banco genético não é ter um catálogo de criminosos, mas sim, eliminar a possibilidade de condenar erroneamente pessoas por base de reconhecimento facial. Além disso, a presença de material genético pode elucidar crimes sexuais, porém não se pode usar esse arcabouço criminológico com desvios de finalidade. A presença de um banco genético não assegura, com precisão, quem pode ser culpado ou inocente, visto que, em uma cena de crime, pode conter vestígios de uma pessoa que consta no sistema, porém, que não teve relação com o crime, senão somente com o local, por ter lá estado. Afinal, a cena de um delito é composta por material genético de diversos indivíduos que transitaram pelo local, portanto, além dos traços e vestígios da vítima temos igualmente de terceiros, como a ciência poderá, corretamente, separar os suspeitos? Será que haverá prevalência na investigação daqueles que já estão no banco genético? Em uma presunção antecipada de culpa? Se for assim, como fica a presunção de inocência? Será que o material encontrado pertencerá, efetivamente, a um potencial culpado, ou apenas a uma pessoa que estava no lugar errado na hora errada?

O Banco genético pode ser utilizado como uma ferramenta válida, sem se descurar que não é infalível e as informações lá constantes podem direcionar as investigações de maneira equivocada, veja por exemplo, a questão de gêmeos univitelinos, por serem originários da fecundação de um mesmo óvulo por um mesmo espermatozoide, o DNA nuclear destes indivíduos é exatamente o mesmo.

A questão que devemos ter uma perspectiva é que o banco genético deveria auxiliar, segundo Sergio Moro, a solucionar crimes, porém, analisemos alguns números: no primeiro semestre de 2020 o banco genético foi utilizado em 825 investigações. O kit de coleta do material genético custa R$30,00, de acordo com o pretendido pelo ex-ministro somente para o banco genético seria necessário investimento de R$22,5 milhões, porém, a questão que se coloca é: o banco genético é, de fato, um instrumento para redução da criminalidade?

Segundo o VIII Relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, de junho de 2018, estavam disponíveis dez mil amostras de DNA de suspeitos de crimes no Brasil. Já haviam sido coletados, desde 2014, 6.800 vestígios. Mas apenas dez decisões judiciais foram tomadas calcadas nesse aparato.

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A urgência se comparada à efetividade nos mostra que a justificação e a ânsia de se ter um banco genético não traduz em uma aplicação contínua e resoluta pelo Judiciário, o que pode questionar até a sua importância. Portanto, de posse de todo esse conjunto normativo acerca da identificação genética a pergunta é: o banco genético é um ganho ou se trata de medida desnecessária à realidade penal e processual penal brasileira?

O Brasil convive com questões graves no tocante a segurança pública. Falta material humano, há déficit nas polícias civil, militar e federal na quase totalidade dos Estados brasileiros. Muito problemas estruturais, como falta de equipamentos, manutenção, munição insuficiente, armamento desatualizado, instalações precárias, aparato tecnológico incompleto e mais uma gama de problemas que têm prevalência sobre investimentos tecnológicos no banco genético.

Como vimos, seu custo e implantação são elevados e o Estado Democrático de Direito possui variados problemas que igualmente carecem de investimento, portanto, qual será a ordem de importância? E mais, sem proteger o banco genético a ação dos criminosos estará sem responsabilização, o banco estará desguarnecido, não existe pena para o comércio ilegal.

O Estado se preocupa em instituir uma medida, todavia, em fornecer proteção e instrumentos adequados para sua aplicação, aí não é a prioridade premente. O Legislador precisa modificar seu modus operandi, as inovações tecnológicas serão sempre bem vindas se melhorarem o que já existe, contudo, sem trazer ainda mais controvérsias e problemas ao já complexo ordenamento penal brasileiro.

*Antonio Baptista Gonçalves é advogado, pós-doutor, doutor e mestre pela PUC/SP e presidente da Comissão de Criminologia e Vitimologia da OAB/SP - subseção de Butantã

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