O mundo enfrenta um dos períodos mais desafiadores da história recente. Como toda crise profunda, a pandemia do coronavírus exigiu a (re)definição das relações interpessoais e comerciais. Não é exagero nenhum dizer que 2020 deu início a um ciclo de mudanças, rompimentos e adaptações que serão perpetuadas por décadas.
Esse conjunto de mudanças também acertou em cheio o comércio internacional no Brasil. Por se tratar de setor que agrega e responde por grande parte das atividades e serviços essenciais, o comércio exterior (COMEX) foi alvo de inúmeras alterações legislativas ao longo do ano que impactaram a circulação de mercadorias, sobretudo nas operações de importação, e o modo de atuação dos seus atores, e que deverão ser observadas como legado sobre o que fazer (e também o que não fazer) para o desenvolvimento do COMEX e, evidentemente, do Brasil.
As primeiras alterações vistas nesse ano são contemporâneas aos primeiros sinais da pandemia em solo tupiniquim. Antes mesmo de o Congresso Nacional ter reconhecido o estado de calamidade pública - que foi feito através do Decreto Legislativo nº. 6, de 20 de março de 2020 -, a Receita Federal já havia editado norma que simplificou o desembaraço aduaneiro de mercadorias e insumos destinados ao combate da Covid-19.
Por aquela regra, permitiu-se, por exemplo, que materiais de uso hospitalar fossem nacionalizados de forma prioritária, podendo ser entregues a seus importadores antes mesmo que fosse finalizada a conferência aduaneira. A saúde, como não poderia deixar de ser, foi prioridade em face do risco fiscal.
Outra medida de grande destaque que impactou sensivelmente as operações de COMEX nesse período foi a redução da carga tributária na importação de insumos voltados aos serviços hospitalares. No mesmo período em que a Receita Federal simplificou o desembaraço aduaneiro, a Câmara de Comércio Exterior zerou o Imposto de Importação (II) de mercadorias como luvas, máscaras e termômetros - inicialmente, até 31 de dezembro de 2020 -, as quais também foram beneficiadas com a redução a zero, de forma temporária, das alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) pelo governo federal.
Essa última redução, da mesma forma que ocorre com o II, está próxima do fim - ou, pelo menos, é o que aponta o cenário existente até a conclusão desse texto. Isso porque, no início do mês de outubro, o governo federal editou decreto no qual estabeleceu que as alíquotas de IPI reduzidas no primeiro semestre de 2020 serão reestabelecidas a partir de 1º de janeiro de 2021, quando também serão retomadas as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita obtida com a importação e comercialização interna de sulfato de zinco para medicamentos usados na nutrição parenteral, que também foram reduzidas a zero durante o ano.
Todos esses esforços, sem dúvida alguma, vieram em boa hora. Assegurar que a oferta de bens e mercadorias essenciais para os serviços de saúde não fosse severamente impactado pela excessiva burocracia do desembaraço aduaneiro (que se mostra como um dos vários calcanhares de Aquiles da logística brasileira) e com a pesada carga tributária nacional foi determinante para garantir a manutenção do sistema de saúde - que, além de enfrentar problemas de gerência e abastecimento há décadas, foi sobrecarregado com o número astronômico de pacientes em todo o País.
Embora tais medidas emergenciais (e voltadas para o enfrentamento de uma pandemia) aparentassem indicar o início de um caminho de desburocratização do despacho aduaneiro no Brasil, outras mudanças percebidas durante o ano não deixaram dúvidas de que se trataram de medidas emergenciais e, portanto, ainda há um longo caminho a percorrer até simplificação do comércio internacional.
Um exemplo disso é a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em setembro, quando, no julgamento do RE nº. 1.090.591, firmou a tese de que a Receita Federal está autorizada a condicionar o despacho aduaneiro e a liberação de um bem importado à regularização de sua situação fiscal, mediante o recolhimento da diferença apurada no arbitramento.
Esse novo entendimento do Supremo tem dois desdobramentos imediatos: de um lado, importa na revisão de entendimento que há décadas está consolidado na Súmula 323 do próprio Supremo, e que tem sido aplicado em grande parte das decisões tomadas pelos Tribunais de todo o País.
De outro, coloca o País em posição de clara insegurança e desvantagem no cenário internacional. Isso porque, enquanto membro da Organização Mundial do Comércio, o Brasil assinou e ratificou o Acordo de Valoração Aduaneira, que impõe aos seus signatários o dever de regular um procedimento específico para a apuração dos tributos devidos nas operações de comércio exterior, garantindo aos importadores a prestação de garantia para cobrir os direitos aduaneiros aos quais a mercadoria possa estar sujeita, sem que isso, todavia, resulte em entrave no desembaraço aduaneiro.
Ainda mais na contramão dessa virada de entendimento, temos que, em março desse ano, foi publicado o Decreto nº. 10.276/2020, pelo qual o Brasil adotou internamente o texto revisado da Convenção de Quioto. Por esse novo protocolo, as autoridades de cada um dos Estados signatários devem empregar todos os esforços para simplificar e harmonizar os regimes aduaneiros e práticas aduaneiras, visando contribuir eficazmente com o desenvolvimento do comércio internacional.
E é aí onde reside uma das más consequências da decisão do Supremo no contexto internacional. Ao reconhecer que as autoridades fiscais estão autorizadas a vincular o despacho aduaneiro ao pagamento dos tributos, o STF chancelou a conduta que figura como verdadeiro entrave para as operações de importação de mercadorias, sobretudo porque a legislação dispõe de outras ferramentas para impor a regularização da situação fiscal sem que isso haja prejuízo para o desembaraço aduaneiro. Nota-se, assim, que a decisão em comento contraria acordos e convenções que foram internalizadas pelo Brasil que, naturalmente, visam simplificar e agilizar a circulação de mercadorias.
Ao contrário do que se viu de decisões como essa, o ano de 2020 também mostrou que a própria Receita Federal, ciente das dificuldades que a burocracia cria para a promoção e segurança do comércio internacional, reviu e adaptou alguns de seus procedimentos para simplificar o desembaraço aduaneiro, exatamente na linha do compromisso que o País assumiu no contexto internacional.
Como exemplo disso, podem ser citadas as normas recém editadas pela Receita que admitem o uso de documentos digitalizados no despacho de importação (Notícias Siscomex Importação nº. 17 e 18/2020), facilitam o fluxo de mercadorias mediante a utilização do sistema Habilita para o credenciamento e habilitação de declarantes de mercadorias (IN nº. 1.984/2020) e que modificam as regras de fiscalização no procedimento de apuração de fraude aduaneira, reduzindo, de 180 para 120 dias, o prazo para a retenção das mercadorias importadas sobre as quais haja indícios de prática de infração que as sujeite à pena de perdimento (IN nº. 1.986/2020). Essas duas últimas normas passam a entrar em vigor no dia 1º de dezembro de 2020.
Em uma breve retrospectiva, é fato que o ano se encerra com significativos avanços para o mercado, mas também deixa em aberto pontos que, possivelmente, abrirão margens para disputas envolvendo os interesses de importadores e o controle exercido pelas autoridades aduaneiras e, potencialmente, servirão para agravar o já conhecido 'Custo Brasil'.
As cenas finais do último ano dessa década mostram que estamos dando passos tímidos na busca da simplificação do desembaraço aduaneiro e na facilitação do comércio. Para nós, fica a esperança de que, além de vencer a pandemia, as medidas pontualmente tomadas para tal enfrentamento sejam estendidas e aprimoradas para o Brasil conseguir avançar na harmonização e, especialmente, na desburocratização do COMEX, para ser inserido no cenário internacional, inclusive para atrair e motivar empresas nacionais a exportarem seus produtos.
*Breno Garbois é sócio do escritório Almeida Advogados e especialista em Direito Marítimo e Portuário
*Pablo Melo é advogado atuante nas áreas do Direito Civil, Marítimo e Portuário no escritório Almeida Advogados