PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Balanço para o comércio exterior: que heranças a pandemia deixa para o desembaraço aduaneiro no Brasil?

Por Breno Garbois e Pablo Melo
Atualização:
Breno Garbois e Pablo Melo. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O mundo enfrenta um dos períodos mais desafiadores da história recente. Como toda crise profunda, a pandemia do coronavírus exigiu a (re)definição das relações interpessoais e comerciais. Não é exagero nenhum dizer que 2020 deu início a um ciclo de mudanças, rompimentos e adaptações que serão perpetuadas por décadas.

PUBLICIDADE

Esse conjunto de mudanças também acertou em cheio o comércio internacional no Brasil. Por se tratar de setor que agrega e responde por grande parte das atividades e serviços essenciais, o comércio exterior (COMEX) foi alvo de inúmeras alterações legislativas ao longo do ano que impactaram a circulação de mercadorias, sobretudo nas operações de importação, e o modo de atuação dos seus atores, e que deverão ser observadas como legado sobre o que fazer (e também o que não fazer) para o desenvolvimento do COMEX e, evidentemente, do Brasil.

As primeiras alterações vistas nesse ano são contemporâneas aos primeiros sinais da pandemia em solo tupiniquim. Antes mesmo de o Congresso Nacional ter reconhecido o estado de calamidade pública - que foi feito através do Decreto Legislativo nº. 6, de 20 de março de 2020 -, a Receita Federal já havia editado norma que simplificou o desembaraço aduaneiro de mercadorias e insumos destinados ao combate da Covid-19.

Por aquela regra, permitiu-se, por exemplo, que materiais de uso hospitalar fossem nacionalizados de forma prioritária, podendo ser entregues a seus importadores antes mesmo que fosse finalizada a conferência aduaneira. A saúde, como não poderia deixar de ser, foi prioridade em face do risco fiscal.

Outra medida de grande destaque que impactou sensivelmente as operações de COMEX nesse período foi a redução da carga tributária na importação de insumos voltados aos serviços hospitalares. No mesmo período em que a Receita Federal simplificou o desembaraço aduaneiro, a Câmara de Comércio Exterior zerou o Imposto de Importação (II) de mercadorias como luvas, máscaras e termômetros - inicialmente, até 31 de dezembro de 2020 -, as quais também foram beneficiadas com a redução a zero, de forma temporária, das alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) pelo governo federal.

Publicidade

Essa última redução, da mesma forma que ocorre com o II, está próxima do fim - ou, pelo menos, é o que aponta o cenário existente até a conclusão desse texto. Isso porque, no início do mês de outubro, o governo federal editou decreto no qual estabeleceu que as alíquotas de IPI reduzidas no primeiro semestre de 2020 serão reestabelecidas a partir de 1º de janeiro de 2021, quando também serão retomadas as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita obtida com a importação e comercialização interna de sulfato de zinco para medicamentos usados na nutrição parenteral, que também foram reduzidas a zero durante o ano.

Todos esses esforços, sem dúvida alguma, vieram em boa hora. Assegurar que a oferta de bens e mercadorias essenciais para os serviços de saúde não fosse severamente impactado pela excessiva burocracia do desembaraço aduaneiro (que se mostra como um dos vários calcanhares de Aquiles da logística brasileira) e com a pesada carga tributária nacional foi determinante para garantir a manutenção do sistema de saúde - que, além de enfrentar problemas de gerência e abastecimento há décadas, foi sobrecarregado com o número astronômico de pacientes em todo o País.

Embora tais medidas emergenciais (e voltadas para o enfrentamento de uma pandemia) aparentassem indicar o início de um caminho de desburocratização do despacho aduaneiro no Brasil, outras mudanças percebidas durante o ano não deixaram dúvidas de que se trataram de medidas emergenciais e, portanto, ainda há um longo caminho a percorrer até simplificação do comércio internacional.

Um exemplo disso é a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em setembro, quando, no julgamento do RE nº. 1.090.591, firmou a tese de que a Receita Federal está autorizada a condicionar o despacho aduaneiro e a liberação de um bem importado à regularização de sua situação fiscal, mediante o recolhimento da diferença apurada no arbitramento.

Esse novo entendimento do Supremo tem dois desdobramentos imediatos: de um lado, importa na revisão de entendimento que há décadas está consolidado na Súmula 323 do próprio Supremo, e que tem sido aplicado em grande parte das decisões tomadas pelos Tribunais de todo o País.

Publicidade

De outro, coloca o País em posição de clara insegurança e desvantagem no cenário internacional. Isso porque, enquanto membro da Organização Mundial do Comércio, o Brasil assinou e ratificou o Acordo de Valoração Aduaneira, que impõe aos seus signatários o dever de regular um procedimento específico para a apuração dos tributos devidos nas operações de comércio exterior, garantindo aos importadores a prestação de garantia para cobrir os direitos aduaneiros aos quais a mercadoria possa estar sujeita, sem que isso, todavia, resulte em entrave no desembaraço aduaneiro.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Ainda mais na contramão dessa virada de entendimento, temos que, em março desse ano, foi publicado o Decreto nº. 10.276/2020, pelo qual o Brasil adotou internamente o texto revisado da Convenção de Quioto. Por esse novo protocolo, as autoridades de cada um dos Estados signatários devem empregar todos os esforços para simplificar e harmonizar os regimes aduaneiros e práticas aduaneiras, visando contribuir eficazmente com o desenvolvimento do comércio internacional.

E é aí onde reside uma das más consequências da decisão do Supremo no contexto internacional. Ao reconhecer que as autoridades fiscais estão autorizadas a vincular o despacho aduaneiro ao pagamento dos tributos, o STF chancelou a conduta que figura como verdadeiro entrave para as operações de importação de mercadorias, sobretudo porque a legislação dispõe de outras ferramentas para impor a regularização da situação fiscal sem que isso haja prejuízo para o desembaraço aduaneiro. Nota-se, assim, que a decisão em comento contraria acordos e convenções que foram internalizadas pelo Brasil que, naturalmente, visam simplificar e agilizar a circulação de mercadorias.

Ao contrário do que se viu de decisões como essa, o ano de 2020 também mostrou que a própria Receita Federal, ciente das dificuldades que a burocracia cria para a promoção e segurança do comércio internacional, reviu e adaptou alguns de seus procedimentos para simplificar o desembaraço aduaneiro, exatamente na linha do compromisso que o País assumiu no contexto internacional.

Como exemplo disso, podem ser citadas as normas recém editadas pela Receita que admitem o uso de documentos digitalizados no despacho de importação (Notícias Siscomex Importação nº. 17 e 18/2020), facilitam o fluxo de mercadorias mediante a utilização do sistema Habilita para o credenciamento e habilitação de declarantes de mercadorias (IN nº. 1.984/2020) e que modificam as regras de fiscalização no procedimento de apuração de fraude aduaneira, reduzindo, de 180 para 120 dias, o prazo para a retenção das mercadorias importadas sobre as quais haja indícios de prática de infração que as sujeite à pena de perdimento (IN nº. 1.986/2020). Essas duas últimas normas passam a entrar em vigor no dia 1º de dezembro de 2020.

Publicidade

Em uma breve retrospectiva, é fato que o ano se encerra com significativos avanços para o mercado, mas também deixa em aberto pontos que, possivelmente, abrirão margens para disputas envolvendo os interesses de importadores e o controle exercido pelas autoridades aduaneiras e, potencialmente, servirão para agravar o já conhecido 'Custo Brasil'.

As cenas finais do último ano dessa década mostram que estamos dando passos tímidos na busca da simplificação do desembaraço aduaneiro e na facilitação do comércio. Para nós, fica a esperança de que, além de vencer a pandemia, as medidas pontualmente tomadas para tal enfrentamento sejam estendidas e aprimoradas para o  Brasil conseguir avançar na harmonização e, especialmente, na desburocratização do COMEX, para ser inserido no cenário internacional, inclusive para atrair e motivar empresas nacionais a exportarem seus produtos.

*Breno Garbois é sócio do escritório Almeida Advogados e especialista em Direito Marítimo e Portuário

*Pablo Melo é advogado atuante nas áreas do Direito Civil, Marítimo e Portuário no escritório Almeida Advogados

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.