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Auxílio-vítima e Estatuto da Vítima: a realidade bate à porta do Congresso Nacional

Por Aluísio Antônio Maciel Neto e Fernando Henrique de Moraes Araújo
Atualização:
Fernando Henrique de Moraes Araújo e Aluísio Antonio Maciel Neto. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O fato ocorrido no dia 16/12/20 na ALESP, envolvendo a conduta do Deputado Estadual Fernando Cury (que encostou seu corpo por trás do da Deputada Estadual Isa Penna e ainda tocou com a mão a lateral do seio da parlamentar, sem prévio consentimento) traz à tona a necessidade de debate sobre personagem esquecida, praticamente inexistente, do ordenamento jurídico e diariamente maltratada e humilhada no país: a vítima.

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A verdade é que tanto o Direito Penal quando o processo penal brasileiros são inspirados no Iluminismo europeu, e nunca cuidaram ou se preocuparam com a vítima.

A legítima defesa da honra do marido traído, que podia até matar a esposa adúltera e ainda ser absolvido com base em tal excludente de ilicitude é o exemplo mais gritante dessa praxe abjeta: a da inversão lógica de valores, culpabilizando vítimas e eximindo criminosos de responsabilidade penal.

Essa cultura que jamais deveria ter existido no Brasil, dá indicativos de que não foi nem de longe abolida, tornando fundamental o alerta de toda a sociedade para cobrar o Congresso Nacional a olhar para as vítimas de violência, legislando em tal sentido.

O sinal vermelho surgiu após o julgamento realizado no STF em 29/09/2020, ocasião em que a 1a turma daquela Corte, por maioria de votos, manteve decisão de Júri (de MG) que absolveu réu confesso, em caso no qual tentou matar a esposa com golpes de faca, quando ela saía de um culto religioso, tudo motivado pela suspeita de ter sido por ela traído.

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São julgamentos como esses que legitimam discursos irracionais e descabidos como "...quem mandou usar um vestido curto"; "quem mandou beber até cair"; para justificar crimes sexuais praticados contra mulheres (crianças; adolescentes ou maiores de 18 anos) e ainda culpabilizá-las por tais hediondos atos de homens, que em verdade podem ser considerados monstros. Mas as mulheres não são as únicas vítimas da violência.

O recrudescimento da violência aponta cada vez mais para o surgimento de um Estado bárbaro no país. Eis alguns exemplos chocantes.

Em julho de 2019, uma batalha sanguinária entre facções rivais ocorreu no Centro de recuperação de Altamira-PA resultando na morte de 52 presos, 16 deles decapitados. Mas não pára por aí.

Em dezembro de 2020, membros de organizações criminosas invadiram, sitiaram cidades, destruíram viaturas, bloquearam batalhões/unidades policiais, fizeram pessoas reféns, utilizando armamento de forças militares, explodiram agências bancárias e saquearam milhões de reais em verdadeiros atos terroristas (episódios ocorridos em Criciúma-SC e Cametá-PA).

O racismo estrutural, ao invés de recuar, avança cada vez mais intensamente, registrado explicitamente nos quatro cantos do país em câmeras de celulares.

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O narcoterrorismo alicia adolescentes e jovens pobres e negros de periferias, impondo medo e toques de recolher em comunidades dominadas por um Estado paralelo.

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Mas o que há em comum em todos esses fenômenos: o Direito Penal e o Direito Processual Penal continuam sendo aplicados como se somente existisse o réu nessa relação social. O réu possui inúmeros direitos desde sua prisão até o fim de um processo: devido processo legal (ampla defesa; contraditório). Nem poderia ser diferente.

Mas e a vítima? Onde fica ela nessa relação? Quais são seus direitos básicos? Quais normas a protegem? Como garantir um tratamento digno nas investigações e processos criminais?

A resposta é simples e encontrada no Código de Processo Penal de 1941, que possui um único artigo que trata do ofendido (sinônimo de vítima), o art. 201.

É isso mesmo. É como se a vítima não existisse quando um crime é praticado, permanecendo nvisível aos olhos da Lei e da Justiça.

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Porém, o que a maioria da sociedade não sabe é que a Constituição Federal possui dispositivo que busca minimizar esse mal decorrente do fenômeno criminoso.

Trata-se do art. 245, que prevê: "A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito." Apesar de vigente desde 1988, esse artigo nunca foi regulamentado por lei alguma.

Natural defensor das vítimas, o Ministério Público tem contribuído para que não permaneçam na invisibilidade.

Em 2015, um grupo de promotores de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu um anteprojeto à então Deputada Federal Mara Gabrilli (hoje Senadora - PSDB/SP) que o encampou e protocolizou a proposta na Câmara dos Deputados (PL 1692/15), a fim de criar o "auxílio-vítima" (a ser custeado com recursos do Fundo Penitenciário nacional, conforme previsão do artigo 3o, inciso IX, da Lei Complementar nº 79/94), tirando, do papel de uma vez por todas, o art. 245, da Constituição Federal. A proposta também prevê a garantia de assistência psicológica às vítimas de violência. O tema, contudo, não encontrou eco no Congresso Nacional.

Em julho de 2020, o Deputado Federal Rui Falcão (PT/SP) acolheu proposta de outro grupo de promotores de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e protocolizou o PL 3890/2020 que propõe a criação do Estatuto da vítima no país.

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São iniciativas que, em comum, buscam conferir minimamente um tratamento digno à vítima na relação processual penal, a fim de relembrar a todos que ela deve ser o centro de irradiação das preocupações da tutela jurisdicional, pois foi quem sofreu lesão ao seu direito por ato consciente e dirigido do acusado. Ela, e não o réu, que suporta as consequências físicas, psicológicas ou patrimoniais do crime cometido, e não pode ser considerada como mero apêndice na Justiça Penal.

Os graves fatos e fenômenos citados no início deste texto justificam a urgente necessidade de o Congresso Nacional discutir e aprovar os projetos de lei do auxílio-vítima e do respectivo Estatuto da vítima, únicas formas de diminuir o desamparo e conferir dignidade de tratamento àqueles que sofrem diariamente no Brasil por conta da violência, mas continuam invisíveis aos olhos da Lei e da Justiça.

*Aluísio Antônio Maciel Neto e Fernando Henrique de Moraes Araújo, promotores de Justica do Ministério Público do Estado de São Paulo (mestres em Direito)

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