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Autonomia do setor cultural: uma realidade distante

Por Allan Carlos Moreira Magalhães
Atualização:
Allan Carlos Moreira Magalhães. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Constituição de 1988 ao estabelecer como dever do Estado garantir o pleno exercício dos direitos culturais, bem como, apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais impõe ao poder público uma postura ativa para efetivar o exercício dos referidos direitos. Contudo, o agir da Administração Pública é pautado pelos limites constitucionais que estabelecem a observância, dentre outros, do princípio da legalidade.

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No entanto, no campo cultural é imprescindível assegurar uma gestão autônoma da cultura e o respeito à vontade geral. É preciso, portanto, como ensina o Humberto Cunha Filho (1), construir uma fórmula que concilie a ampla liberdade de expressão, a submissão dessa liberdade ao interesse geral, e que o fomento do Estado, quando necessário, seja independente do conteúdo, desde que não atente contra os direitos humanos.

Para alcançar esse desiderato, o setor cultural precisa de autonomia normativa, o que não significa uma produção legislativa alheia à atuação legiferante do Estado, mas que este reconheça as normas e definições oriundas do setor cultural, bem como a participação do segmento na tomada de decisão estatal no que tange à efetivação dos direitos culturais.  Desta feita, é preciso um tratamento diferenciado para a cultura em relação às normas de Direito Administrativo, que impõem regras gerais para a atuação estatal.

O Congresso Nacional aprovou em 10 de dezembro de 2020 em caráter definitivo o Projeto de Lei n. 4253/2020 que estabelece normas gerais de licitação e contratação da administração pública. Esse projeto, ainda pendente de sanção presidencial, expressamente revoga, dentre outras normas, a Lei 8.666/93 que atualmente disciplina as licitações e as contratações públicas. Esse projeto de lei, quando sancionado instituirá um novo regime jurídico administrativo.

Mas, a futura lei não modificará a forma de agir do poder público no campo cultural, pois ela não foi pensada para o referido setor e suas peculiaridades, motivo pelo qual reproduz velhas fórmulas como a da inexigibilidade de licitação constante no artigo 25, III e que é reproduzida no PL nº 4253/2020, no artigo 73, inciso II com adaptações apenas na redação. De acordo com as referidas normas, considera-se inexigível a licitação para a contratação de profissional do setor artístico, desde que presente o requisito da consagração pela crítica especializada ou pela opinião pública.

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A norma exige que o profissional seja um artista consagrado. Mas, e se houver, como de fato existe, mais de um artista consagrado no respectivo setor artístico, qual deles deve ser contratado? O que ofertar o menor preço? O que tem mais seguidores nas redes sociais? O que vende mais fonogramas ou o que está no topo das paradas de sucesso? O fato é que o requisito da consagração fixado pelo direito administrativo é amplo e não baliza o exercício da discricionariedade do gestor público. Logo, atendido o requisito legal da consagração a contratação mostra-se lícita, mas claro que se também observar os demais princípios da administração pública como o da moralidade administrativa.

Essa licitude conferida pelo Direito Administrativo, contudo, assegura a promoção de entretenimento, mas não necessariamente do exercício dos direitos culturais, pois a tomada de decisão é atribuída ao gestor público, não sendo exigido qualquer tipo de participação popular ou a submissão à vontade geral, assim como ignora a necessidade de avaliar se a atuação do Estado se faz necessária para salvaguardar e promover a diversidade cultural. Neste último aspecto, parece que o próprio requisito legal da consagração do artista revela que a atuação do Estado é até mesmo desnecessária enquanto política cultural.

É preciso efetivar a autonomia do setor cultural por meio de normas que observem suas peculiaridades, pois a sistemática do Direito Administrativo se mostra insuficiente por conferir um elevado poder discricionário ao gestor que pode decidir segundo seu gosto pessoal. Por outro lado, estabelece um grande rigor na prestação de contas para artistas e profissionais do setor, ignorando que uma grande parte deles atua na informalidade.

A construção de um equilíbrio entre as exigências legais e a finalidade das políticas culturais, ou a fórmula conciliatória proposta por Humberto Cunha Filho mencionada no início deste texto, é uma medida que se faz urgente, e apenas será alcançada se as normas jurídicas que disciplinam a atuação do poder público no campo cultural forem construídas com base nas regras e princípios que fundamentam os direitos culturais enquanto campo autônomo do Direito.

É imprescindível, portanto, uma legislação específica para o setor cultural que verse sobre licitações e contratações públicas, mas também que discipline os instrumentos jurídicos indispensáveis para a política cultural de apoio e incentivo à valorização e à difusão das manifestações culturais.

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*Allan Carlos Moreira Magalhães, doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) Autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo

(1) CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc, 2018.

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