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Atuação preventiva do Ministério Público Federal e moderação de conteúdo na internet

Por Fabricio Bertini Pasquot Polido
Atualização:
Fabricio Bertini Pasquot Polido. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Com o início de 2022 sendo atravessado com as repercussões da variante omicron da Covid-19 em escala global, seria interessante observar a recente incursão do Ministério Público Federal no campo da moderação de conteúdo online e operações das redes sociais no Brasil. Inegavelmente, o cenário institucional tende a ser favorável para um espaço de revisita das políticas regulatórias da internet. O acirramento de conflitos envolvendo conteúdo desinformativo e de descrédito deliberado às urnas eletrônicas, o avanço das discussões sobre o PL das Fake News no Congresso e as repercussões negativas imputadas às Big Techs no ano passado também foram contributivos para certo discurso sensacionalista nada preocupado com a efetividade dos direitos fundamentais online.

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Ele já havia sido deflagrado em diversas articulações do meio jurídico brasileiro, mas o momento é de cautela e expectativas, sobretudo quanto à mensagem de que órgãos de aplicação da lei, como o MPF, e tribunais possam fazer a diferença. Ambos têm condições de buscar maior compreensão sobre os desdobramentos políticos, sociais, econômicos e culturais em torno do uso da internet no Brasil, para além do cenário do eleitoral e da Covid19. O percurso desejável incluiria maior conhecimento sobre a natureza e a extensão das atividades dos governos, organizações e empresas na área digital, e o que elas representam para o campo das políticas normativas envolvendo plataformas e moderação de conteúdo. Afinal, qualquer tentativa de intervenção nesse campo exige um engajamento multissetorial inquestionável, da mesma forma como áreas dominadas pelo caráter interdisciplinar, como em matéria de meio ambiente, finanças, consumidor e combate à corrupção.

Há questões sensíveis a serem discutidas, portanto, na chamada "governança de conteúdo" na internet desde a perspectiva brasileira, tanto em função dos trabalhos do Legislativo e Executivo (em especial órgãos do Ministério da Economia, da Justiça e Comunicações), como também na consolidação da jurisprudência brasileira dos tribunais superiores. Bastaríamos lembrar o tortuoso percurso - mas necessário - dos inquéritos tramitando no STF que investigam atos envolvendo notícias falsas e ataques às instituições democráticas a partir de certos perfis de usuários em redes sociais. Nada é por acaso, e parece que a própria ordem constitucional pediu e ainda pede socorro.

O MPF, em sua tarefa de defesa do sistema jurídico brasileiro, por sua vez, corresponde com expectativas de aproximar a prática doméstica àquela de instituições irmãs em outros países no campo digital, além de realizar suas missões constitucionais, seus papeis preventivos e educativos em conflitos envolvendo uso da internet. O órgão é capacitado para aprofundar os mecanismos institucionais de aplicação de tratados e convenções de que o Brasil é parte e que apresentem intersecções possíveis com o campo da internet e proteção dos direitos fundamentais online. Aliás, não poderíamos deixar de destacar que essa tarefa foi recentemente comandada aos tribunais brasileiros, particularmente com a edição das Recomendações n. 123, de 7 de janeiro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça, exortando os órgãos do Poder Judiciário brasileiro à "observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas".

Importante a constatação de que a regulação da internet e o fortalecimento dos mecanismos de efetividade e aplicação das leis digitais, como o Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD, encontram-se intrinsecamente ligados à modernização das instituições de proteção de direitos humanos nos planos doméstico e internacional. Por isso mesmo, tanto em relação a autoridades governamentais, à Administração Pública quanto a organizações e empresas atuantes no Brasil, o MPF não poderia deixar de estabelecer as premissas de uma atuação técnica e preventiva em suas áreas e atribuições constitucionais. Extrajudicialmente, o órgão está amparado por competências que o autoriza, dentro dos lindes legais, a agir preventiva e educativamente, com a formulação de recomendações, realização de audiências públicas, adoção de Termos de Ajuste de Conduta (TACs) e promoção de acordos de cooperação técnica em suas áreas de atuação.

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Uma retrospectiva recente das incursões do órgão em matérias relacionadas à internet e políticas de plataformas, por exemplo, corrobora parcela de uma razoável preocupação por especialistas em temas voltados a Direito e Tecnologias. Espera-se um compromisso de coerência com a efetividade dos mecanismos de proteção dos direitos humanos, de tutela dos interesses sociais e individuais indisponíveis por parte do MPF no ambiente digital, sobretudo para que se justifiquem as várias frentes de intervenção social pelo órgão, igualmente repaginadas desde o advento da Constituição de 1988 e redemocratização do país. De outro lado, essas medidas não poderão resultar em seletividade ou atuação persecutória contra indivíduos e organizações, sob pena de subversão de garantias materiais e processuais previstas na lei constitucional e tratados e convenções de que o Brasil é parte.

Em 8 de novembro de 2021, o MPF caminhou com a abertura de investigação para apurar a conduta adotada pelas principais redes sociais, como WhatsApp, Facebook, Instagram, Telegram, Twitter, Tiktok e YouTube, no combate às notícias falsas e à violência digital. No inquérito, conduzido pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo, as redes sociais investigadas teriam de demonstrar quais são suas práticas de enfrentamento à desinformação que apresentam riscos à saúde e ao funcionamento das instituições democráticas. Esse movimento, com efeito, teria sido resultado de preocupações legítimas por parte do órgão e da sociedade civil brasileira em relação à disseminação de notícias falsas e conteúdo desinformativo envolvendo tratamento da Covid-19 e eficácia das vacinas. Em larga medida, observou-se que parte da escalada de extremismo online nesse período igualmente contribuiu para alavancar sentimento de hostilidade às instituições políticas e democráticas no cenário brasileiro. Em muitos desses cenários, tem sido fundamental o exercício de poder investigativo pelo MPF quanto à origem e aos elos financeiros da cadeia de desinformação e do ódio 'ex maquina' na internet. São elas que tecnicamente assegurarão a obtenção de provas robustas relacionadas à produção de fake News e informações sobre como empresas de internet têm adotado medidas para identificar e combater a disseminação de conteúdo nocivo. Do ponto de vista dos instrumentos contratuais e corporativos adotados pelas empresas, o MPF pediu esclarecimentos a respeito da aplicação de termos de uso, políticas de moderação e relatórios de transparência das empresas, de tal modo a identificar e avaliar os canais de denúncias à disposição dos cidadãos e usuários brasileiros.

Posteriormente, já na primeira semana de 2022, no dia 6 de janeiro, o órgão abriu um inquérito civil com o objetivo de colher informações a respeito das condutas de Twitter diante da disseminação de conteúdos falsos envolvendo a pandemia da Covid-19 e dos critérios utilizados pela plataforma para conferir verificação de perfis da rede. O estopim da demanda teria ocorrido após o resultado de verificação do perfil de uma extremista online, Bárbara Destefani, pela plataforma. Não por acaso, a extremista já tinha sido alvo de uma decisão do STF no bojo do Inquérito das Fake News, além de ser alcançada pela determinação do Tribunal Superior Eleitoral às plataformas e que levou à desmonetização de seu canal no YouTube. O MPF solicitou ao Twitter, dentre outros, a prestação de informações sobre: a oferta, aos usuários da plataforma, de canal de denúncia de conteúdos falsos envolvendo a Covid-19; a explicação sobre a falta de alternativas para usuários de denunciar conteúdos desinformativos à plataforma no Brasil; as providências tomadas para que ferramenta de denúncia seja disponibilizada, além do prazo para sua implementação; os critérios utilizados para conferir verificação a usuários e indicar se, entre os critérios empregados pela plataforma para rejeitar o status de perfil verificado, haveria eventual envolvimento de usuário na disseminação de conteúdo desinformativo em tema de saúde pública. Dias depois, o Twitter anuncia as novidades relacionadas a novas funcionalidades da plataforma para jurisdição brasileira, e para outros países, como Espanha e Filipinas, de modo a oferecer um canal de denúncia de conteúdos que estejam potencialmente em violação de suas políticas de plataforma sobre informações enganosas. A resposta do conglomerado vem justamente ao encontro de um processo em curso de transformação das políticas de moderação de conteúdo no globo, particularmente na União Europeia e nos Estados Unidos, onde igualmente tensões políticas e sociais são sentidas nas pressões regulatórias sofridas pelas empresas de internet.

Em uma proposta mais técnica de suas frentes de atuação relacionadas a condutas de empresas de internet e uso das redes sociais, o MPF terá a função de fiscalização e de aplicação das leis vigentes, observando os distintos padrões de políticas de plataformas, mas também as avenidas possíveis de controle da atuação do Executivo e Legislativo no domínio digital. Na escalada do controle do discurso e opinião política na internet, sobretudo em períodos eleitorais (como agora em 2022 no Brasil), Estados e governos tendem a interferir, de modo transitório e injustificado, em direitos de usuários de internet e atuação de agentes econômicos.

O sintoma costuma ser notado por projetos de leis e medidas regulatórias que buscam restringir os usos da internet, incluindo operações de empresas prestadoras de serviços de motores de busca, redes sociais e aplicativos de mensagens, além de medidas de interferência sobre as diversas formas pelas quais cidadãos interagem nas redes sociais e sobre os fluxos de dados e de informação no ambiente digital. Não se trata aqui de uma defesa de comportamentos "imunes" à intervenção regulatória e sancionatória pelo Direito, mas antes do pleito de que eles possam passar por testes de proporcionalidade e garantias do devido processo, inclusive no ambiente digital.

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A participação do MPF em processos administrativos e judiciais envolvendo usuários de internet e redes sociais, além de uma oportunidade de contribuição a frentes relacionadas à governança do conteúdo, é bem-vinda. Ela deve estar ancorada em um debate orientado pela aplicação dos direitos fundamentais de usuários, princípios da ordem econômica da Constituição e possibilidades de construção de espaços de diálogos multissetoriais, como aqueles estruturados no cenário institucional Marco Civil da Internet e tratados e convenções em direitos humanos de que o Brasil é parte. Da perspectiva do MPF e órgãos de aplicação das leis, pois, haverá várias oportunidades para refinamento de suas práticas relacionadas a matéria de direitos fundamentais online, direitos digitais, proteção do consumidor online, direito de internet, e que estão associadas às redes sociais. Da perspectiva das grandes plataformas, existem oportunidades de aperfeiçoamento das práticas relacionadas à moderação de conteúdo nas redes sociais, explicitação dos critérios de remoção de conteúdo, especialmente aqueles considerados nocivos (violentos, racistas, xenofóbicos, discriminatórios) e aqueles que eventualmente dificultem o acesso às obras protegidas por direitos de autor por parte de pessoas cegas e deficiência visual.

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Isso porque há regras internacionais que devem ser cumpridas no Brasil, inclusive de observância para órgãos de aplicação das leis, como MPF, além dos tribunais brasileiros e agentes econômicos operando no país, e que teriam efeitos diretos sobre situações ocorridas nas plataformas. Destacam-se, nesse sentido, tratados e convenção com status de norma constitucional, como o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso (Decreto 9.522/2018); a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (Decreto 6.949/2009); e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (incorporada ao direito brasileiro pelo recém-publicado Decreto nº 10.932/2022). Esses três instrumentos, inclusive, foram aprovados pelo Congresso Nacional conforme o procedimento especial previsto do art. 5º, §3º, da Constituição, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com status de normas constitucionais reformadoras, como emendas constitucionais.

Ainda quanto à atuação do MPF, valeria um paralelo com o movimento que surge hoje entre extremistas online em relação às decisões de moderação de conteúdo e ataques às redes sociais. Analisados os contextos político e institucional envolvendo esses temas, existem duas correntes diferentes que ganham força no Brasil. De um lado, o Executivo com a Medida Provisória 1068 (devolvida pelo Congresso), e que deu origem ao Projeto de Lei nº 3.277/2021, pretendendo justamente barrar qualquer tipo de moderação ligada à conteúdo desinformativo, e abrir brechas para conteúdo veiculando porte de arma, assédio online e violência. Iniciativas dessa natureza, via oposta, poderão ser prejudiciais a muitos dos usos legítimos na internet, em redes sociais, motores de buscas, aplicativos de mensagens, plataformas de comércio eletrônico, serviços de pagamentos digitais.

De outro lado, a repercussão vem do próprio MPF, com o cuidado de uma atuação preventiva que não reforce qualquer excesso de conduta moderadora por parte das plataformas. Em especial, essa preocupação existe enquanto não haja uma decisão técnica e suficientemente informada de política normativa sobre como e em que medida é possível revisar padrões, regras e princípios relativos ao uso da internet, de modo a estimular as interações sociais relevantes em ambientes digitais e não desincentivar novos modelos de negócios da própria economia digital no país. Diante do cenário mais otimista que podemos encontrar, iniciativas do MPF no campo da governança de conteúdo tenderão a ser aperfeiçoadas. Como mote, é essencial que elas sejam pautadas pelo equilíbrio relacionado aos direitos e obrigações relativos ao uso da internet no Brasil e a efetiva aplicação das normas que asseguram direitos fundamentais online, direitos de cidadania digital.

Por isso mesmo sempre haverá uma dose de expectativa positiva envolvendo os contrapontos acima discutidos. E esse aspecto revela-se decisivo para todos aqueles que foram educados e treinados em um ambiente favorável a direitos e garantias, entusiasmados por uma Constituição tão promissora como a brasileira e pelos compromissos assumidos internacionalmente ao longo de décadas. Esses temas certamente representarão um terreno de consenso e divergências, e espera-se que eles sejam submetidos a diálogos de alto nível envolvendo moderação de conteúdo na internet em 2022.

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*Fabricio Bertini Pasquot Polido, professor associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo - USP. Sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas em L.O. Baptista

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