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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Assassina e traiçoeira

Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO Foto: Estadão

Instrumento que é fabricado para matar, para acabar com a vida, a razão de tudo o mais, mereceria desaparecer da face da Terra. Armas são, além de assassinas, traiçoeiras. Quantos relatos de "acidentes" fatais serão necessários para que a humanidade se conscientize de que armamento é nefasto e precisa ser banido da civilização?

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Alec Baldwin matou, sem querer, a jovem Halyna Hutchins, diretora de fotografia que trabalhava com ele. Não adianta se sentir "destroçado". A verdade é que Halyna morreu. Não voltará nunca mais.

O que explicará, num país que mata tantos jovens e tantas crianças, que tenha ressurgido o apelo ao armamento, sinal sintomático de um primitivismo tosco, a merecer repúdio de uma consciência civilizada?

Só pode ser doença, a do fanatismo empedernido, cego à verdade, teimoso a proclamar imbecilidades como se fossem o suprassumo da sabedoria, tais como terraplanismo, horror à ciência, sobretudo à vacina, os nutrientes que fazem crescer a intolerância, o ódio e toda espécie de violência.

Leio com prazer o livro "Carlos Gracie - o criador de uma dinastia" de Reila Gracie, publicado pela Record e encontro sinais de que o Brasil já esteve melhor do que em 2021. Carlos Gracie escreveu um único livro, "Introdução ao jiu-jitsu", pela editora Pongetti, com prefácio de Henrique Pongetti, o dono da editora. Nesse prefácio, o editor menciona "os olhos azuis de poeta", a "calma de jogador de xadrez" e a "máscara de contemplador" de Carlos Gracie, que "vive em obediência aos ditames da natureza: não bebe, não fuma, segue uma esclarecida norma alimentar". Sua única arma é o jiu-jitsu, estratégia de defesa limpa, instrumento para obtenção de saúde física e moral.

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O fundador da dinastia dos Gracie é muito explícito em suas intenções: "Nunca tivemos em mira acirrar ânimos, provocar rixas, excitar temperamentos e adestrar corpos humanos para finalidades que reduziriam os nossos discípulos a lamentáveis êmulos de galos de briga (...) Jamais o saneamento mental deixou de constituir escopo relevante em nossa escola (...) Apesar de todas as vantagens que inegavelmente o jiu-jitsu proporciona, lamentavelmente se verifica que, por ignorarem em que consiste verdadeiramente essa arte, os que mais dela necessitam são os que se mostram refratários a estudar e praticar os seus ensinamentos, tão úteis e necessários a fracos e fortes (...) e, sobretudo, aos de temperamento belicoso, os quais, frequentemente, por falta de uma educação conveniente, recorrem a processos intempestivos, perigosos e tantas vezes nocivos".

Isso foi escrito em 1948 e é inegável reconhecer que, desde então, nesse campo - como em tantos outros - o Brasil regrediu.

É incrível que a pregação armamentista utiliza o medo como argumento. É de medo dos "bandidos" que o "homem honesto" deve se armar. Mas não é com armas que se combate o medo. Gracie já criticava a prática de incutir medo nas crianças, espécie de traumatismo moral, principal motivo de uma vida de fracassos que,: "forçando-nos a uma fuga, nos leva à derrota, quando uma simples expectativa serena nos conduziria à vitória. (...) O medo - que em tantas ocasiões nos põe estarrecidos - nada mais é do que o estado nascido no momento em que o homem duvida de suas forças, de seu poder. Portanto, quanto mais perfeita for a consciência de nossas possibilidades e de nossos recursos, mais confiantes enfrentaremos as situações. Quando temos confiança em nós mesmos e - sobretudo - quando esse estado foi alcançado depois de comprovarmos nossa experiência, mais facilmente somos senhores de nós mesmos. Com espírito superior e positivo, sem peias convencionais ou recalques deturpantes, a tolerância, a indulgência e a complacência serão as faces do prisma cristalino através do qual o nosso discernimento será cada vez mais esclarecido pela luz da realidade. Dificilmente voltaremos a ficar à mercê de circunstâncias que antes faziam com que perdêssemos o sangue frio, que nos tornavam joguetes de impulsos insensatos, nervosismos infundados, emotividade doentia, angústia torturante e incontinência verbal. Passando a respeitar cada vez mais os outros e a nós mesmos pelo hábito da honesta e justa apreciação, iremos substituindo pela moderação a violência e as atitudes selvagens".

Lição atualíssima, de quem sempre foi contra o uso de armas: "...haverá quem, de boa-fé, possa negar o grande número de crimes que teriam sido impossíveis se, no mau momento, a mão executora não tivesse ao seu alcance imediato a arma maléfica? E quantas outras vezes a vítima, se conhecesse as defesas que o jiu-jitsu ensina, não teria evitado a desgraça, beneficiando a si mesma, ao desvairado atacante, às respectivas famílias e à própria sociedade".

As mentes insanas que insuflam que "os homens de bem" se armem, deveriam adotar o jiu-jitsu para si e adotá-lo como prática intensiva para que uma parte cada vez mais irada de uma sociedade em busca de um rumo perdido, se convencesse de que a arma é um mal em si. Assassina e traiçoeira.

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*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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