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As relações civil-militares: um debate necessário

Por Pedro Ivo Teixeirense
Atualização:
Pedro Ivo Teixeirense. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Desde que Jair Bolsonaro alcançou o Palácio do Planalto, uma espécie de ritual sinistro passou a ocorrer todos os anos no último dia do mês de março. Nessa data, os brasileiros despertam com a notícia de que o Ministério da Defesa emitira mensagem, celebrando o "movimento militar de 31 de março de 1964". Na interpretação do governo, as Forças Armadas assumiram "a responsabilidade de pacificar o país" e de "garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos". Alguns instantes depois, os brasileiros descobrem que grupos progressistas, intelectuais e associações liberais emitiram uma quantidade impressionante de "notas de repúdio". As mensagens quase sempre apontam os inúmeros equívocos nas interpretações oficiais, relembram as graves violações de direitos humanos e encerram seu apelo com o repúdio à ditadura. Ditadura Nunca Mais, na clássica fórmula consagrada desde meados dos anos 1980.

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No dia seguinte, quando o país se reencontra com as diferentes faces de sua realidade, os embates (digitais) do dia anterior passam a figurar como uma vaga lembrança: como se fossem uma "disputa insolúvel" acerca do passado. No governo de Jair Bolsonaro, esse ritual tem sido identificado como a questão central dos debates que, ao longo das últimas décadas, procuram responder ao seguinte questionamento: como devemos lidar com o legado do regime militar? Uma questão que envolve não apenas os temas relacionados aos limites da interpretação dos fatos históricos, mas, sobretudo, os aspectos práticos da transição de um regime ditatorial para uma democracia.

Quando analisamos a história recente do país, percebemos que a transição entre o regime militar e a nova República não foi capaz de aprofundar nosso ambiente democrático. Em alguma medida, isso ocorreu, porque ao lado do arcabouço liberal, consagrado no texto da Constituição de 1988, sedimentou-se o legado autoritário do regime militar. Em outubro de 1988, os constituintes preferiram não questionar as prerrogativas militares que ferem o conjunto da obra constitucional. Ao conferirem um verniz democrático aos amplos poderes atribuídos aos militares, as forças políticas consagraram um modelo de relação civil-militar, que paira como ameaça sobre o regime brasileiro.

Durante muitos anos, essas prerrogativas foram interpretadas pela caserna como instrumentos de poder e barganha, que favoreciam sua posição no conjunto do Estado brasileiro. Para garantir seus interesses, as Forças nomearam mais de uma dezena de oficiais superiores para o lobby junto aos constituintes. E nos trabalhos de redação do texto constitucional, asseguraram na presidência da Comissão de Organização Eleitoral e Garantia das Instituições o coronel Jarbas Passarinho, que mandara "às favas todos os escrúpulos", quando assinou o Ato Institucional n° 5, que deu início ao período mais brutal da ditadura militar. De fato, durante o longo processo que marcou o retorno dos militares aos quartéis, a manutenção dessas prerrogativas foi interpretada como uma espécie de "retirada honrosa": com o fracasso retumbante do último governo ditatorial, os militares saíam de cena com a sensação de que perderam a batalha, mas não a guerra.

Na última semana, a saída do Ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, e a subsequente exoneração dos comandantes das três Forças recolocaram no centro do debate as relações civil-militares e o predomínio do poder civil sobre a caserna. A reorganização do comando militar - ocorrência inédita em toda a história republicana brasileira - tem sido atribuída às tentativas do presidente Jair Bolsonaro de instrumentalizar as Forças para a consolidação de um projeto autoritário de poder. De fato, em diversas ocasiões o presidente incitou a intervenção militar na política, fez ameaças diretas aos demais poderes constituídos e passou a se referir ao Exército brasileiro como "meu Exército", numa alusão equivocada acerca das funções constitucionais da Força.

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O comunicado divulgado pelo general Fernando Azevedo, ex-Ministro da Defesa, procura apresentar, como traço fundamental de seu período à frente do Ministério, a preservação das "Forças Armadas como instituições de Estado". A mesma linha argumentativa foi utilizada pelos comandantes-demissionários que se afastaram do comando das FFAA. Ainda que essas manifestações possam servir como alerta contra os projetos autoritários do presidente da República, elas participam uma falácia perigosa sobre o comportamento do Exército na vida política nacional. Reconhecer a complexidade do problema afeito às relações civil-militares no Brasil, talvez seja o primeiro passo para o estabelecimento de diálogo franco e transparente na busca por soluções adequadas. Ao longo de sua história, as Forças Armadas têm interferido de forma inadequada na vida política nacional.

A interpretação corrente entre os militares - a de que o artigo 142 da Constituição confere às Forças Armadas uma posição moderadora hegemônica entre os poderes constituídos - inviabiliza, na prática, o regime democrático. Essa interpretação é um legado do período ditatorial que atribui às Forças o papel de poder soberano, capaz de suspender a validade do ordenamento jurídico para a preservação da ordem. As tentativas de instrumentalização das Forças para projeto arbitrário de poder é, em alguma medida, um produto das constantes intervenções e ameaças, que as Forças Armadas têm realizado na vida política nacional.

A atual crise militar - a partir do afastamento inédito dos comandantes das três Forças - parece ratificar entendimento há muito consagrado nos trabalhos acadêmicos: a incapacidade de adequação das Forças Armadas ao ambiente democrático é uma ameaça ao seu próprio funcionamento. Reconhecer que as Forças Armadas são instituições do Estado, indispensáveis para o projeto de desenvolvimento nacional e para a defesa do país, não equivale a falsificar sua história. Precisamos enfrentar o tema das relações civil-militares em um debate franco e aberto. Reformar as instituições militares e rever a manutenção de prerrogativas que são incompatíveis com o regime democrático. As Forças Armadas deveriam ser as mais interessadas nesse debate.

*Pedro Ivo Teixeirense é doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutorando (FAPERJ) na Universidade Federal Fluminense (UFF). Integra a Rede Proprietas, hoje INCT - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - História Social das Propriedades e Direito de Acesso

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