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As principais mudanças na regulamentação da Lei Anticorrupção e seus desafios

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Por Thais Dantas e Victor Ferreira Arichiello
Atualização:

Thais Dantas e Victor Ferreira Arichiello. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Na última segunda-feira, 18/7, entrou em vigor o Decreto 11.129/2022, que regulamenta a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), em substituição ao Decreto 8.420/2015.

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Sete anos após a publicação do primeiro diploma legal regulamentando a também chamada Lei da Empresa Limpa, o novo decreto do Poder Executivo busca consolidar algumas das práticas já adotadas pelas autoridades responsáveis pela apuração de infrações administrativas e pela celebração de acordos de leniência.

Uma das principais mudanças, e mais bem-vindas, é o maior enfoque que se dá aos programas de integridade: se em 2015, apenas dois anos após a publicação da Lei Anticorrupção, a preocupação era fazer com que as empresas implementassem ou melhorassem seus programas, a preocupação atual é acabar com o "compliance de papel", em que não há investimento adequado nem revisão constante das normas internas de integridade.

Prova disso é a inclusão do termo "destinação de recursos adequados" como uma das formas de se demonstrar o comprometimento da alta direção da empresa, e a listagem, como um dos objetivos do acordo de leniência, do fomento da cultura de integridade no setor privado. Afinal, compliance não é gasto, é investimento, como já bem explicado pelo Estadão[i].

O novo decreto também prevê, nesse sentido, que, no cálculo da multa aplicada à empresa, decorrente de Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), haverá uma redução de até 5% se a pessoa jurídica sancionada tiver e aplicar programa de integridade conforme parâmetros do decreto. Pelo antigo decreto, a redução máxima era de 4%.

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A seguir encontram-se as principais mudanças, como as anteriores, trazidas com o decreto que já está em vigor e que passam a valer em todos os processos administrativos, inclusive nos que já estavam em curso.

  • Delimitação expressa de quem está sujeito à Lei Anticorrupção

Buscando compreender a totalidade das práticas lesivas que ocorrem em terras tupiniquins, pondo fim às discussões sobre ilegitimidade passiva, o decreto ora discutido foi explícito não apenas em incluir expressamente a responsabilidade civil das pessoas jurídicas, em adição à administrativa já existente, como também em delimitar quem está sujeito aos mandamentos e penalidades previstas na Lei Anticorrupção.

De acordo com o mais novo documento normativo, todas as empresas brasileiras, sem exceção, estão à mercê da lei acima, ainda que sejam praticados atos fora do território nacional ou contra administrações públicas estrangeiras.

Além disso, empresas estrangeiras que tenham filial ou representação no Brasil também foram incluídas no rol de pessoas jurídicas subordinadas à Lei da Empresa Limpa.

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Por óbvio, qualquer empresa que praticar um ato lesivo, ou parte dele, no território nacional, ou cujos efeitos possam ser produzidos em terras brasileiras, também são passivas de sofreram as sanções do referido diploma.

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  • Aumento do poder de investigação e mudanças no PAR

O Processo Administrativo de Responsabilização ("PAR") também ganhou novos contornos com o novo decreto, especialmente na fase preliminar de investigação.

A chamada "investigação preliminar" teve seu prazo para conclusão ampliado de 60 para 180 dias. Além disso, a corregedoria ou a comissão encarregada por sua condução passou a ter poderes para, dentre outras coisas, requerer às autoridades competentes medidas como busca e apreensão, solicitar informações bancárias sobre movimentação de recursos públicos, mesmo que sigilosas, e solicitar a atuação de especialistas de outras organizações.

Em outras palavras, a apuração inicial sobre os possíveis ilícitos de corrupção cometidos pelas pessoas jurídicas assemelha-se, e muito, às investigações criminais já existentes, dispondo, inclusive, da possibilidade de pleitear medidas invasivas, como busca e apreensão.

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Para além disso, o novo decreto estabelece que, finda a investigação preliminar e, sendo o caso de PAR, a comissão responsável deverá, no despacho de instauração, indiciar a empresa, fazendo constar a descrição clara do ato imputado com todas suas circunstâncias, as provas que sustentam o entendimento da ocorrência de ato lesivo, e o enquadramento do ato lesivo.

O que o novo decreto não traz, contudo, são os efeitos práticos da indiciação, que não existia pelas regras anteriores. Não faz menção, por exemplo, à possibilidade de inclusão dessa informação em cadastros públicos, como o de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) ou de Empresas Punidas (CNEP), ou à eventual impossibilidade de se obter contratos ou outros instrumentos com a Administração Pública durante o curso do processo.

Outro ponto de atenção está relacionado à tramitação do PAR: caso a empresa, intimada do início do processo por qualquer meio, inclusive por edital, não apresente sua defesa escrita no prazo, os demais prazos correrão sem notificação, e só haverá intimação caso a pessoa jurídica se manifeste de forma voluntária, sem possibilidade de repetição dos atos já praticados.

Ou seja, caso a empresa tome ciência de que está sendo alvo de PAR durante seu andamento, não poderá, por exemplo, apresentar sua defesa se o processo já estiver em outra fase, o que impede inclusive que ela requeira a produção de provas.

  • Mudanças no cálculo da multa a ser aplicada

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A principal mudança relacionada ao cálculo da multa está relacionada aos critérios de majoração e de redução da sanção pecuniária, que foram, quase em sua totalidade, modificados.

Essas alterações tornaram as penalidades, em sua maioria, mais severas, na mesma linha, por exemplo, do que vem acontecendo no recrudescimento do Direito Penal. Vejamos:

 
 
 
 
 

Mudanças relacionadas aos acordos de leniência

Os acordos de leniência, a seu turno, passam a ter maiores formalidades. Além de o novo decreto dispor, de forma expressa, que tal instrumento também é uma forma de responsabilização administrativa das empresas, ele lista sua natureza jurídica (ato administrativo negocial (...) que visa à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a administração pública nacional ou estrangeira), e seus três objetivos: (i) incremento da capacidade investigativa da administração pública, (ii) potencialização da capacidade estatal de recuperação de ativos, e, como já visto, (iii) fomento da cultura de integridade no setor privado.

Além disso, as empresas que desejam firmar acordos de leniência passam a ter que admitir sua responsabilidade objetiva pelo ato lesivo, e não só a participação na infração administrativa. Por mais que pareça apenas mera alteração de redação, não nos parece aleatória a substituição dos termos, já que uma coisa é admitir que participou de uma infração administrativa, outra é chamar para si a responsabilidade objetiva sobre um ato ilícito.

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Também devem as pessoas jurídicas reparar integralmente a parcela incontroversa do dano e perder os valores obtidos como acréscimo patrimonial.

A proposta de acordo, que antes poderia ser oral, passa a ser, obrigatoriamente, apresentada de forma escrita, dando início a um juízo de admissibilidade. Se a autoridade entender que existem elementos mínimos para início da negociação, será assinado um memorando de entendimentos com os parâmetros da negociação, havendo instauração de um processo administrativo específico para registro de todos os atos praticados.

Todos esses aspectos demonstram uma maior preocupação com a padronização de todas as etapas da negociação, desde a apresentação da proposta até a declaração de cumprimento do acordo, evitando, como acontece na prática, de diferentes autoridades responsáveis pela celebração de acordos adotarem procedimentos diferentes, causando desnecessária insegurança jurídica.

Uma das alterações mais benéficas trazidas é o marco a partir do qual os efeitos decorrentes do acordo (p. ex. isenção da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicos e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo Poder Público) passam a valer: se antes era a partir do cumprimento, pelo novo decreto isso já ocorre a partir de sua celebração.

Além disso, o acordo poderá também prever a resolução de ações judiciais relacionadas aos fatos por ele abrangidos. Apesar de o novo decreto expor a necessidade de um ato conjunto entre Controladoria-Geral da União e Advocacia-Geral da União para tratar da negociação e acompanhamento de acordos de leniência, entendemos que, nesse aspecto, subsiste certa insegurança jurídica, tendo em vista que, como é sabido, algumas autoridades encontram certa resistência em fazer valer termos de acordos dos quais não participaram como subscritores.

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Por fim, outra alteração salutar em relação aos acordos de leniência é a possibilidade, em situações excepcionais, de renegociação, a pedido da empresa, das obrigações pactuadas. Apesar de o novo decreto não estabelecer quais seriam essas situações, entendemos que essa mudança é um reflexo direto da pandemia de COVID-19, que causou prejuízos financeiros e obrigou muitas pessoas jurídicas a reverem radicalmente seus planos e modelos de negócios. Defendemos, já em 2020, a possibilidade de renegociação de acordos de leniência com base em tais circunstâncias[ii].

  • Outras mudanças

O objetivo não é, aqui, se alongar em todas as alterações trazidas pelo novo decreto. Entendemos que existem muitas mudanças e acréscimos relevantes, relacionados, por exemplo, à ideia de se mitigar a ainda persistente insegurança jurídica que permeia acordos de leniência, aos cadastros de empresas inidôneas, suspensas e punidas, aos potenciais desdobramentos na esfera penal etc.

Por esse motivo, elaboramos um quadro comparativo, artigo por artigo, entre os dois decretos, que pode ser conferido abaixo:

Documento

COMPARATIVO

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As mudanças trazidas com o decreto não afetam apenas as empresas que já respondem administrativamente por ilícitos previstos na Lei Anticorrupção, mas dão importante foco na necessidade de que todas as empresas atuantes no território nacional, ainda que estrangeiras, se adequem às novas exigências de integridade, em um mundo em que cada vez mais a ética é vista como necessária e que os gastos em compliance são considerados investimentos, e não despesas.

O investimento pesado nos setores de compliance e nos programas de integridade será o "fiel da balança" aos olhos dos órgãos públicos, que, ao que tudo indica, passará a fiscalizar de forma ainda mais veemente como as companhias previnem, detectam e sanam desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos.

É esperado que o documento normativo seja alvo de diversas e necessárias críticas e questionamentos, até mesmo na esfera judicial, vez que diversas questões sobre a constitucionalidade ou não de dispositivos do decreto podem, e devem, ser levantadas.

Tais questionamentos não podem, todavia, obstar a adequação das empresas, ainda que tardia, à legislação. E mais: a maioria das alterações, a nosso ver, são positivas. Já passou da hora de aqueles que querem fazer negócios com a administração pública atuarem de forma lícita e com lisura. Não à toa, cada vez mais a integridade há de ser recompensada.

[i] Entenda o que é compliance e como as empresas podem se beneficiar dos investimentos nessa área. Disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/governanca,o-que-e-compliance-beneficios-investimentos,70004038286>.

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[ii] Arichiello, Victor; Silva, Roberta. Covid-19 justifica revisão de parcelas em acordos de colaboração premiada. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mai-08/arichiello-revisao-parcelas-acordos-colaboracao-premiada>.

*Thais Dantas, advogada criminalista do escritório Pimentel e Fonti Advogados, graduada pela Universidade de São Paulo (USP-SP) e membra efetiva das comissões de Estudos em Compliance e Advocacia Criminal da OAB-SP

*Victor Ferreira Arichiello, advogado do Pimentel e Fonti Advogados, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especializado em Compliance pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

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