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'As pessoas querem ser felizes, amar', diz ex-desembargadora

Apontada como maior estudiosa do Direito da Família, Maria Berenice Dias pondera que 'a família saiu um pouco desse formato sempre imposto pela religião'

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 Foto: Estadão

Maria Berenice Dias. Foto: Paulo Giandalia/Estadão Conteúdo

Por Julia Affonso

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A advogada Maria Berenice Dias é reconhecida entre seus pares como uma referência nas questões relacionadas ao Direito da Família, no Brasil. Primeira mulher a se tornar desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ela é frequentemente citada em decisões judiciais favoráveis a famílias bimaternais, bipaternais e multiparentais - quando os responsáveis pela criança são mais de três -, de ponta a ponta no País.

"As pessoas querem ser felizes, amar quem quiserem. Quando nada é reconhecido, gera uma invisibilidade com consequências extremamente perversas", afirma.

Maria Berenice se dedicou à magistratura durante 35 anos. Hoje, ela atua em prol das famílias. Em fevereiro, representou uma delas em um dos primeiros casos de multiparentalidade do Estado. E venceu. Um casal de mulheres teve uma filha com um amigo, e a menina conseguiu ser registrada no nome dos três.

"Está havendo todo esse alargamento de conceitos da família. Uma inclusão, um reconhecimento. No fundo, soluções éticas. Ou seja, atribui responsabilidade a quem assume", explica. "Existe família sem casamento, existe filho sem casamento, existe filho sem sexo, existe sexo antes do casamento. A família é um núcleo de afetividade."

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LEIA A ENTREVISTA COM A ADVOGADA MARIA BERENICE DIAS

ESTADÃO: O que é família?

MARIA BERENICE DIAS: A família saiu um pouco desse formato sempre imposto pela religião e, por consequência, pelo Estado, que seria um núcleo formado por um homem e uma mulher com uma chancela de Estado, formalizando isso com um fim procriativo. Esse conceito mudou porque se desatrelaram casamento, sexo e procriação, essa tríade que identificava a família. O casamento teve uma época que era insolúvel, ao menos no papel. Ainda que não fosse, as pessoas se separavam e formavam novas estruturas familiares, sem nome, sem lei, excluídas, marginalizadas, sem reconhecimento de direito nenhum. As pessoas querem ser felizes, amar quem quiserem. Quando nada é reconhecido, gera uma invisibilidade com consequências extremamente perversas. Se eu não sou reconhecido, se eu não existo, eu não tenho direito nenhum. Isso dá margem a injustiças enormes. Isso começou a bater nas portas do Judiciário e o juiz tem que encontrar uma solução. Não adianta se agarrar na lei e dizer: 'Não, tu não existes'. (A Justiça) começou a reconhecer estruturas formadas a margem do casamento. Toda tentativa de amarrar as relações vivenciais dentro de um determinado padrão de comportamento certamente gera consequências nefastas, porque deixa fora da tutela jurídica do Estado, deixa fora de proteção a maneira que as pessoas têm de viver que foge desse modelo. Se a família não é mais casamento, o que é a família? Existe família sem casamento, existe filho sem casamento, existe filho sem sexo, existe sexo antes do casamento. A família é um núcleo de afetividade.

ESTADÃO: Do que uma criança precisa?

MARIA BERENICE: Atenção, cuidado, educação, carinho e imposição de limites. Quem faz isso, se é um homem, uma mulher, dois homens, duas mulheres, não importa. Ela precisa é receber isto. Precisa de um lar, onde ela seja respeitada, lugar de aconchego, lugar de afeto. Isso é que é uma dificuldade de se reconhecer.

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ESTADÃO: Por que a sra. acha que alguns legisladores tentam engessar estruturas familiares que eles não consideram padrão?

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MARIA BERENICE: A alegação seria de ordem religiosa. Acho que isso é até aparente. Se agarra em um livro escrito a muitas mãos, há mais de 2 mil anos, em latim, invertido a primeira vez para o alemão e depois todas as outras línguas. Cada palavra tem inúmeros significados. Não existe uma leitura unívoca deles. A gente pode dizer que é verdade do século passado. Tu vais ser uma profissional com uma biblioteca do século passado? Ninguém acredita em um médico que não se atualize. Mil outros contextos não são reconhecidos. Ali diz que não se pode ter relações sexuais com mulheres menstruadas, que filho desobediente tem que morrer, isso tudo está escrito na Bíblia. São 20 determinações de morte, como a de manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Essas outras 19, ninguém acha que é pior. Pegam este livro, com todas estas características, e escolhem. E se agarram nisto, geram legiões de pessoas, que chama de fieis, acabam sendo ovelhas, que acabam querendo convencer as pessoas de que essa é a verdade.

ESTADÃO: O que é a multiparentalidade?

MARIA BERENICE: Esse conceito de multiparentalidade deriva deste conceito de família. A família é afeto, e os vínculos de filiação também o são. A família se desatrelou do conceito de casamento, como o conceito de filiação se desatrelou da verdade biológica. Existia até em Jesus Cristo, um pai que era Deus e um pai sócio-afetivo que era José. Ele vivia bem e tinha dois pais. Já tínhamos uma multiparentalidade desde lá. Não tenho dúvida nenhuma disso. Quem é pai e quem é mãe? Quando é que se começou a haver a prevalência do vínculo da afetividade sobre o biológico? Os primeiros embates que surgiram na Justiça foram de mães que entregaram os filhos (à adoção), por questão cultural, porque eram solteiras ou para o marido não saber. As pessoas que pegavam esses filhos criavam como filhos. As crianças identificavam esses pais como pais. Depois, as mulheres se arrependiam e queriam ir atrás dos filhos. Foi se consolidando priorizar o vínculo dessa filiação afetiva. Isso se cristalizou de tal maneira que para todas as outras circunstâncias que começaram a surgir o resultado, a orientação continua sendo a mesma. Nas formas de reprodução assistida, quem é que se reconhece como pai e mãe? Não há vínculo biológico. Pode ser barriga de aluguel, pode doação de óvulo e de espermatozoide. Quem é o pai e a mãe? Aquele que desejou o filho. As primeiras hipóteses de multiparentalidade começaram a ser reconhecidas pela Justiça eram de laços de convivência simultâneos. A maioria das vezes, falecimento da mãe ou do pai e o companheiro criou. A adoção tira o pai biológico. Até que se chegou a possibilidade de se ter no registro o nome de mais de 2 pessoas.

ESTADÃO: Como funcionam os direitos, como pensão alimentar, em casos de multiparentalidade?

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MARIA BERENICE: A criança tem direito a todos. Se houver separação, tem obrigação alimentar. Se morrer qualquer deles, a criança tem herança de todos. São realidades que de fato existem e isso só vem atender ao direito da criança. Ela tem direito com relação a mais pessoas. Mais pessoas têm obrigações com ela. Foi com este sentido que a Justiça começou a reconhecer a possibilidade de crianças serem registradas em nome de duas mães ou dois pais. Vamos esperar que surja uma lei para te conceder direitos? É por isso que a Justiça avança, às vezes é muito criticada, chamam de ativismo judicial, mas é muito por esse imobilismo muito conservador do nosso legislador. A lei diz que o juiz tem de julgar. Não pode dizer 'se não tem lei, eu não julgo'. A lei que diz que o juiz tem de julgar é de 1942, então, não é uma novidade que o juiz supre a lacuna da lei. Isso é uma determinação. Ele tem de achar uma saída, casos semelhantes, analogia, princípios constitucionais. Assim que se avança em termos de jurisprudência.

ESTADÃO: O que alegam as pessoas contrárias à multiparentalidade?

MARIA BERENICE: Basicamente que as crianças não teriam um modelo a seguir de comportamento. Filhos de homossexuais, (eles) sempre acham que a criança vai ser homossexual. Ou que a família seria algo meio promíscuo, uma tendência ainda ligando homossexualidade com pedofilia. Teve uma decisão no Paraná que admitiu a adoção, mas só criança do sexo oposto ao do casal e com mais de 12 anos de idade. Uma bobagem. Quando foge desse modelo de pai, mãe, casamento, a ideia é a execração pública. Está havendo todo esse alargamento de conceitos, da família, de inclusão, de reconhecimento. No fundo, soluções éticas. Ou seja, atribui responsabilidade a quem assume. O que a Justiça tem feito? Tu tens um filho? Então, se responsabilize por ele. Para se responsabilizar, tem de ser reconhecido, estar no papel.

ESTADÃO: Como a sra. vê a situação dos direitos humanos no País?

MARIA BERENICE: Estamos indo no embalo do avanço mundial. Uma consciência mais generalizada das pessoas que têm de ter seus direitos respeitados.

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