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As lições da pandemia para o mercado de aviação

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Por Guilherme Amaro
Atualização:
Guilherme Amaral. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O início de 2020 renovava a esperança dos profissionais envolvidos com o mercado da aviação no Brasil de uma continuidade na construção de um ambiente de negócios menos regulado, mais aberto a diferentes modelos e, na medida do possível, mais distante da imagem de que nosso país teria um mercado complicadíssimo e caro para se operar.

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Tal complexidade, como muitos sabem, e como muitos insistem em não querer saber, não contribui para uma aviação melhor, não contribui para um mercado mais atrativo para novos grupos e empresas e, mais importante que as anteriores, não contribui para uma experiência melhor para os passageiros.

Por essa razão, a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) iniciou há anos um trabalho duro e complexo de desregulamentação do setor, que quando concluído, certamente será reconhecido pela maioria da sociedade como uma grande evolução no modelo de regulação brasileiro.

No entanto, esse que deveria ser o principal foco do mercado da aviação comercial para 2020 ficou inesperadamente em segundo plano dada a magnitude do impacto no setor da pandemia de Covid-19.

A indústria da aviação foi, sem dúvida alguma, a primeira a sentir de maneira relevante os impactos da pandemia, e talvez tenha sido a que sofreu de maneira mais profunda suas consequências. Além disso, é possível que seja também a última a se recuperar plenamente.

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Se no início do ano as principais discussões do setor giravam em torno de medidas para reduzir a judicialização excessiva das relações entre passageiros e companhias aéreas, além do interesse de grupos "low cost" internacionais em operar por aqui, rapidamente o foco passou a ser uma multiplicidade de medidas de resgate e socorro para evitar a falência das companhias brasileiras (situação replicada em praticamente todos os países do mundo).

Em um primeiro momento, a pandemia trouxe caos e confusão a um mercado já dinâmico e complexo. Muitos passageiros (em meio a viagens ou com planos para datas muito próximas), nenhuma regulação ou lei que controlasse o cenário da pandemia de maneira apropriada e ausência de regras tarifárias específicas para o assunto fizeram com que existisse enorme dificuldade em lidar com fronteiras fechando, voos sendo cancelados e passageiros desistindo de viajar.

Nesse momento, a judicialização, que já era um problema grande no mercado brasileiro, cresceu e criou complicações ainda maiores para que as companhias aéreas conseguissem reagir à crise.

Em um segundo momento, com o início de um movimento de redução no volume de passageiros em meio a uma viagem ou com planos para datas próximas (algo natural já que as pessoas pararam de viajar e pararam de planejar e adquirir viagens para datas futuras), deu-se início também a um movimento emergencial de regulamentação da relação entre passageiros e empresas aéreas.

Além de outras medidas tomadas de maneira mais generalizada, principalmente as que diziam respeito às relações entre empresas e seus empregados, o setor aéreo foi afetado pela alteração de algumas regras bastante específicas. A primeira medida de impacto relevante foi a edição da Medida Provisória 925/2020, datada de 18 de março, que focava em dois pontos principais: dar prazo extra para a realização dos pagamentos devidos pelas concessionárias de aeroportos ao governo federal, e dar prazo extra às companhias aéreas para a realização de reembolso aos passageiros na hipótese de cancelamento e pedido de reembolso de passagens emitidas até 31 de dezembro de 2020.

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O mesmo racional do prazo extra valeu para o Decreto nº 10.284/2020, regulamentado pela Portaria nº 402/GC3, que adiou para o fim do ano o vencimento das tarifas de navegação aérea - despesa relevante paga pelas companhias aéreas à administração pública federal pelo uso da infraestrutura de navegação no país.

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Ao mesmo tempo em que várias outras medidas foram sendo implementadas, como a liberação por parte da ANAC das obrigações de uso dos slots (janelas de tempo para pouso e decolagem), afastando a possibilidade de punição das companhias aéreas com a perda dos slots por falta de operação de seus voos, medidas que prejudicavam o funcionamento do setor também entravam em vigor, como a proibição de entrada de estrangeiros no país.

No mesmo período, seguindo uma tendência que se replicou em várias partes do globo, o governo federal iniciou a discussão de um pacote de socorro às companhias aéreas capitaneado pelo BNDES que, em razão do custo e do formato das garantias, sequer chegou a ser implementado.

No mês de maio, já com o mercado praticamente congelado pela pandemia (de acordo com a ANAC a redução na oferta de assentos havia chegado a 92,6%), foram publicadas as Resoluções 556 e 557, trazendo alterações na aplicação da Resolução 400 da ANAC, e fixando interpretação da agência na aplicação da MP 925. O caminho, uma vez mais, foi o de flexibilizar obrigações e preservar, da maneira possível e sem trazer prejuízos extremos aos passageiros, o caixa das combalidas companhias aéreas.

Por fim, a partir de agosto, chegamos a um terceiro momento da pandemia e de seus impactos no setor aéreo. Com um volume baixíssimo de passageiros, comercialização de bilhetes próxima a zero e muito pouco tráfego aéreo. Essa fase de maior tranquilidade foi reforçada não só pela existência de previsões específicas para lidar com as questões da pandemia nas regras tarifárias da maioria dos bilhetes comercializados a partir de abril, mas também pela transformação em lei de várias das previsões importantes para regulamentar a relação entre passageiros e companhias aéreas.

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A Lei nº 14.034/2020 não só acolheu e aprofundou pontos, como o prazo maior para reembolso criado pela MP 925, mas também trouxe novos pontos importantes para o setor ao alterar o Código Brasileiro de Aeronáutica (lei nº 7.565/86) como, por exemplo, a exigência de comprovação de efetivo dano para que se fale em indenização por dano moral ou reconhecer excludentes de responsabilidade antes ignorados pela legislação específica.

O atual estágio de relativa calma na relação entre passageiros e companhias aéreas nos desafia à seguinte reflexão: a alteração de algumas normas para, de certa forma, proteger as companhias aéreas na relação com passageiros fará duradoura a atual redução no volume de processos movidos por estes últimos?

A ameaça real de não termos companhias aéreas que resistissem a mais essa crise, definitivamente a maior de todas, causou enorme reflexão dos legisladores, do regulador, e da sociedade como um todo, a respeito do papel das empresas e, acima de tudo, do papel dos órgãos governamentais, inclusive o Judiciário, na manutenção da viabilidade dessa atividade.

O mesmo aconteceu em diversas outras indústrias, onde se viu, de repente, uma boa vontade maior e uma redução no protecionismo habitual a terceiros em relação às empresas (principalmente consumidores e empregados).

A questão a ser respondida no próximo ano, além da óbvia dúvida a respeito do controle (ou do fim) da pandemia e do retorno às atividades normais, é se o legado de maior flexibilidade nas relações, de menos conflito e de mais cuidado no julgamento de empresas, por falhas cotidianas e compreensíveis no contexto de uma operação extremamente complexa, será definitivamente incorporado à legislação e à realidade do mercado brasileiro.

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Espera-se que assim seja, e que tenhamos um mercado cada vez mais flexível, desregulado e aberto a novos modelos e à concorrência, onde as empresas de fato se diferenciem por um produto melhor, um serviço melhor e um tratamento melhor a seus passageiros. E que o passageiro continue tendo poder de escolha para reconhecer aqueles que se destacam positivamente.

*Guilherme Amaral, sócio responsável pela área de Direito Aeronáutico do ASBZ Advogados

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