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As inundações, as mudanças climáticas e a inércia governamental

Por Carlos Bocuhy
Atualização:
Carlos Bocuhy. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O homem, de todas as espécies, foi a única capaz de se estabelecer em quase todas as regiões do mundo em função de sua capacidade de adaptação. Essa capacidade está sendo testada pelas alterações climáticas.

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A ONU divulga nesta semana o relatório do Painel Intergovenamental das Mudanças Climáticas (IPCC), onde aponta que, sem a devida adaptação, as mortes em função de inundações crescerão em 130% dentro do cenário que se prenuncia com profundas mudanças no clima do planeta.

A segurança depende da adaptação, no mínimo, para quatro em cada 100 brasileiros. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil tem 8.266.566 pessoas vivendo em áreas de risco. No Sudeste, a população sob risco chega a 10 para cada 100. Só nas capitais do Sudeste e suas regiões metropolitanas, o Cemaden aponta 3.205.132 pessoas expostas ao risco.

Para enfrentar a inércia governamental revelada neste universo de desconformidades que cresceu sob as vistas grossas do poder público, considerando ainda a gravidade de suas consequências retratadas na perda de centenas de vidas soterradas em 2022, há de se considerar, em primeiro lugar, o porquê de os alertas de riscos geológicos não se transformarem em políticas públicas.

Ressalto dois aspectos importantes na construção dos processos adaptativos às mudanças climáticas: a informação e a participação social. Sobre a informação, nada há de mais avassalador do que a falsa segurança. Saber que não há segurança faz com que a comunidade tente se proteger, mas a falsa segurança traz a armadilha letal do imobilismo. A intempestividade das mudanças climáticas ainda não se transformou em informação acessível para as comunidades envolvidas.

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Além do histórico descaso e omissão com relação às áreas de risco, que deve ser tratado com a devida penalização, há de se considerar a rápida defasagem nas políticas públicas de adaptação climática no Brasil. As ações governamentais têm sido dirigidas, quando são, dentro da série histórica da pluviometria do passado, com base em um índice de chuvas que já não é mais referência para segurança no atual cenário da aceleração das mudanças climáticas.

Deve-se ainda identificar o risco das áreas não mapeadas e atualizar as áreas sujeitas a deslizamentos e inundações em função dos fatos novos. As metodologias de avaliação de riscos deverão contemplar a intensidade das mudanças do clima, assim como devem ser mais efetivos e responsáveis os processos de regramento e fiscalização para o uso e ocupação do solo.

Licenciamentos ambientais devem considerar novas metodologias com o concurso de aporte científico especializado, assim como os projetos de contenção e drenagem já construídos precisam ser redimensionados.

Conhecendo as mazelas do sistema de gestão, onde o conhecimento não se transforma com facilidade em políticas públicas, as soluções não serão possíveis sem um processo integrado de controle social às iniciativas de adaptação. Por exemplo, agregando ao Programa Estadual de Prevenção de Desastres Naturais (PDN) do Estado de São Paulo elementos de controle social. Seu último informe técnico, de 2016, traz criteriosas recomendações complementares sobre como evitar, reduzir riscos e enfrentar desastres naturais.

Há de se reconhecer o bom trabalho geotécnico desempenhado por instituições sérias e responsáveis, como o centenário Instituto Geológico do Estado de São Paulo, inexplicavelmente extinto pela atual gestão.

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Considerando o acúmulo histórico de conhecimento técnico e a possibilidade de sua atualização frente às mudanças climáticas, os levantamentos de risco devem chegar às instâncias decisórias providos com a eficácia de "watchdogs", com mecanismos de controle social.

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O Brasil precisa urgentemente da instalação de comitês com participação da sociedade local, especialmente das comunidades diretamente afetadas, para acompanhar as ações preventivas, corretivas e a destinação e a aplicação de recursos orçamentários.

Segundo preconiza o Princípio 10 da Declaração do Rio de 1992, ratificado pelo Brasil, "no nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios". Este princípio foi ratificado na Convenção de Arhuss (1998) e pelo Acordo de Escazú (2018).

A participação social deve ser assegurada por leis específicas, evitando o desmantelamento de conselhos por meio de decretos como fez o governo de Jair Bolsonaro.

Como a gestão de áreas de risco se encontra sob competência estadual e municipal, projetos de leis estaduais serão bem-vindos na criação de comitês de participação social para o acompanhamento das áreas de risco, cumprindo o que dispõe a Lei da Política Nacional das Mudanças Climáticas (12.187/2009) em seu art. 3º: "A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último no âmbito internacional (...)".

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Não haverá adaptação climática para a sobrevivência da população ameaçada sem que se proporcione total transparência dos atos públicos, seja nos aspectos estruturais e não estruturais, desde a previsão climática por um sistema de meteorologia eficiente e com capacidade informar a sociedade, especialmente as comunidades em risco; o mapeamentos de riscos geológicos com metodologia adequada e atualizada para a avaliação dos impactos dos eventos extremos; políticas públicas de adaptação, com dotação de recursos para obras de estabilidade geológica e remoção de populações; aspectos preventivos de controle do uso do solo com fiscalização eficiente e a oferta de projetos habitacionais; entre outros.

Enfrentar as mudanças climáticas demanda forte vontade política internacional para a eliminação dos gases efeito estufa (GEE), mas é preciso promover a adaptação com participação direta da sociedade envolvida, exercendo o controle social de forma colegiada, com representatividade e legitimidade.

Precisamos democratizar a política de gestão dos riscos climáticos, garantindo a adaptação por meio de uma efetiva participação dos interessados em sua própria sobrevivência.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

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