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As insolvências transnacionais na recuperação e falência de empresas

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Por Sabrina Maria Fadel Becue
Atualização:
Sabrina Maria Fadel Becue. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No último dia 24 de dezembro foi sancionada pelo presidente da República a Lei 14.112/2020. Esta mudança tem o objetivo de atualizar o regime jurídico da recuperação de empresas e da falência, considerando que a Lei 11.101 completou 15 anos de vigência e, neste período, o mercado e os operadores do Direito constataram necessidade de aprimoramento de algumas de suas regras.

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Entre as principais inovações, destaco a inclusão de um capítulo destinado às insolvências transnacionais. É um ponto importante, sobretudo para as multinacionais. Por insolvência transnacional entendemos todo processo de recuperação de empresas ou de falência que, em razão do movimento de internacionalização das empresas brasileiras, envolvam subsidiárias, ativos e/ou credores sediados fora do Brasil que, por esta razão, possam dar início a um processo estrangeiro de cobrança, liquidação ou restruturação da empresa. O grande objetivo das regras de insolvência transnacional é coordenar processos que tramitam no Brasil e no exterior e incentivar a cooperação entre as autoridades brasileiras e estrangeiras, de modo a obter um resultado favorável às partes.

Para facilitar a cooperação entre tribunais de diferentes países é importante que o regime jurídico, no que diz respeito ao reconhecimento do processo estrangeiro e ao diálogo entre as autoridades, seja similar, célere e conhecido por todos (juízes e partes). Por isso, no idos de 1997, a UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional), organização internacional vinculada à ONU, elaborou uma lei modelo de insolvência transnacional e esse é o regime que finalmente o Brasil passa a adotar. Diversos países de destaque no comércio internacional incorporaram a Lei Modelo da UNCITRAL, como Estados Unidos, Inglaterra, Cingapura, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Chile e Colômbia.

A proposta da UNCITRAL possui quatro pontos chaves. Primeiro, regras de acesso de credores estrangeiros e do representante do processo estrangeiro à jurisdição local. Segundo, um procedimento específico de reconhecimento do processo estrangeiro, diferenciando entre processo principal (onde devem ser tomadas as decisões mais importantes sobre as atividades e os bens do devedor) e processo não principal (responsável por definir o destino de estabelecimentos ou bens locais). Terceiro, medidas de caráter provisório, automáticas ou discricionárias, a serem concedidas pelo magistrado brasileiro como consequência do reconhecimento do processo estrangeiro (principal ou não principal).

As medidas previstas ou sugeridas na Lei Modelo visam proteger os ativos da empresa contra constrições individuais, capazes de frustrar o interesse da coletividade de credores, bem como de tentativas do próprio devedor de ocultar bens. Quarto, a cooperação e coordenação entre jurisdições, diante da existência de procedimentos em trâmite em diferentes países, mas que dizem respeito ao mesmo devedor (empresa ou grupo empresarial). A ideia central da Lei Modelo é fundada na cooperação e no diálogo direto entre autoridades e atores cruciais dos processos de insolvência para, tal como exposto em seu preâmbulo, aumentar a segurança jurídica do comércio internacional, maximizar o valor dos ativos das empresas multinacionais e/ou permitir a restruturação de empresas em escala supranacional.

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Tanto o pedido de reconhecimento do processo estrangeiro, como o modo de cooperar foram estruturados pela UNCITRAL para desvincula-los dos mecanismos demasiadamente burocráticos e formalidades locais, a exemplo dos canais diplomáticos e procedimentos típicos de cooperação jurídica internacional previstos no Código de Processo Civil (homologação de sentença estrangeira e expedição de carta rogatória).

Quando pensamos na crise de conglomerados empresariais é fácil lembrar da falência do Lehman Brothers ou da reestruturação de várias companhias aéreas, entre elas, o caso recente da Latam. Estes são exemplos notórios de insolvência transnacional, ainda que sem repercussão direta no judiciário brasileiro. Ocorre que várias das nossas multinacionais, em processo de recuperação judicial, tiveram que lidar com litígios iniciados fora do Brasil ou valeram-se da Lei Modelo da UNCITRAL já incorporada em outros localidade, para pedir, por exemplo, o reconhecimento do processo brasileiro nos Estados Unidos com o propósito de impedir bloqueios de bens e que decisões estrangeiras frustrassem o trâmite da recuperação judicial em andamento em nosso país. Nesse sentido, podemos citar os casos da OGX, Rede Energia, Petroforte, OAS, Oi, Odebrecht.

As regras de insolvência transnacional que o Brasil passa a adotar espelham uma mudança de postura perante os parceiros comerciais e, como elas, sinalizamos que a abertura dos mercados para as empresas multinacionais brasileiras implica abertura do nosso aparato judiciário para lidar com a crise destas multinacionais e, também, a crises dos grupos estrangeiros com atividade econômica em nosso território. Contudo, não basta promulgar o texto da Lei Modelo da UNCITRAL, é preciso compreender seu caráter internacional, interpretar seus conceitos e novos termos sem viés nacionalista e sem analogia ao direito doméstico. A UNCITRAL auxilia nesta difícil missão: disponibiliza diversos guias de interpretação e integração da lei modelo e um compilado de decisões estrangeiras. Todo este acervo, inclusive precedentes estrangeiras, deverão ser consultadas pelos operadores brasileiros a fim de preservar o espírito harmonizador da Lei Modelo de Insolvência Transnacional.

*Sabrina Maria Fadel Becue é doutora em Direito (USP) e sócia do HMMB Advogados Associados

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