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As ilegalidades do decreto presidencial que regula a internet

Por Marco Antonio Sabino
Atualização:
Marco Antonio Sabino. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Na minha última aula no Bacharelado em Administração de Empresas da FIA perguntei aos alunos o que eles fariam se, em suas festas de casamento, amigos iniciassem uma arruaça. Todos me responderam: seriam convidados a se retirar. Fico pensando por que, se uma noiva ou noivo podem expulsar arruaceiros de sua festa, qual a razão de o Facebook, Instagram, Twitter e outros não poderem remover conteúdo impróprio de suas plataformas.

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O Executivo Federal não pensa assim. Não leva em consideração os anos de sanitização que as redes sociais promovem em suas timeline e feeds. O presidente Bolsonaro prometeu, e está em circulação, minuta de decreto que "regulamenta" o Marco Civil da Internet ("MCI"). Nele, fundamentalmente, a ordem para que redes sociais e meios de pagamento somente removam conteúdo por ordem judicial, sob pena de sanções que podem envolver a proibição de operação. A par das dúvidas quanto à iniciativa e à fiscalização (Ministério do Turismo), em conta do limite de palavras para este artigo, passo a enunciar alguns defeitos do decreto que, entendo, pautam sua inconstitucionalidade e ilegalidade:

a) a "preservação da liberdade de expressão de usuários" é um argumento válido quando se fala de remoção de conteúdo na internet, mas obviamente a liberdade de expressão não cobre hipóteses de notícias falsas e desinformação. O decreto não trata do tema, senão autorizando quando existem contas que têm a finalidade de disseminar conteúdos falsos. O usuário que ocasionalmente compartilhar falsidades poderá contar com o amparo de ordem judicial para a remoção de seu conteúdo falso;

b) exigir ordem judicial para remover conteúdos tóxicos significa inverter o ônus da iniciativa para a vítima. O decreto flerta com a insidiosa ideia que quem foi ofendido (porque, afinal de contas, somente quem foi ofendido com violência ou ameaça pode contar com a remoção da plataforma) deve provocar o Judiciário, com todos os seus custos - financeiros, de informação, de insegurança, de tempo - para ter resguardado seu direito de não ser ofendido. Considerando que as pessoas não se estimulam a incorporar esses custos, diversas situações de violação a direitos quedarão injustiçadas;

c) será que alguém perguntou ao Judiciário o que ele acha disso? Considerando os milhões de posts removidos por segundo da internet por esses intermediários, uma de três: ou o Judiciário se tornará um analista de timeline do Facebook, julgando apenas pedidos de remoção de conteúdo, ou o já congestionado Judiciário ficará ainda mais atolado, ou, ainda, o Judiciário se tornará um Leviatã, com a incorporação de milhares de juízes e de toda a infraestrutura. Isso viola a Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro, porque é medida inconsequente; a Lei de Liberdade Econômica, porque não houve estudo de impacto regulatório; e a Lei de Responsabilidade Fiscal, porque cria, indiretamente, despesa sem a correspondente fonte de receita;

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d) se você caluniar, injuriar, difamar alguém, ou se praticar um estelionato na rede social, ou assédio ou bullying sem violência, seu conteúdo só será, pelo decreto, removido por ordem de um juiz. Muito conveniente para quem se vale desse expediente; péssimo para quem quer ter uma experiência saudável na rede social;

e) não há justa causa regulatória. Se o Estado acusa as plataformas de praticarem censura, agora a censura mudou de mãos: passa para o Estado. Não se pode dizer que as redes sociais sejam infalíveis nas remoções de conteúdo, mas que elas mais acertam que erram, isso é verdade. Se elas mais acertam que erram, para que a necessidade de ordem judicial? Os motivos que impulsionam o decreto, a meu ver, não autorizam a necessária regulação. O decreto, nesse sentido, viola o princípio da subsidiariedade, vital na livre iniciativa constitucional, segundo o qual o Estado não regulará quando os particulares conseguirem determinar as diretrizes de determinado fenômeno. O STF já reconheceu, diversas vezes, o princípio da subsidiariedade em iniciativas regulatórias com as do decreto;

f) o problema do decreto não é só para o destinatário do conteúdo, mas para o remetente. Uma ação judicial de remoção de conteúdo nunca vem sozinha: vem, também, pedido de indenização, além da condenação em custas e honorários, conforme o foro do processo. O remetente de conteúdo controverso - a defesa de uma causa, por exemplo - temerá sofrer processo e indenização, e, na dúvida, não mais de manifestará. O nocivo chilling effect mostrando novamente sua cara;

g) as exceções do decreto - circunstâncias em que a remoção independe de medida judicial - podem parecer militar a favor das plataformas, mas não é isso. Deveras, não ficará ao arbítrio da plataforma excluir um conteúdo que ela entende que não viola a liberdade de expressão - agora, a plataforma enfrentará ações judiciais e iniciativas do Estado para remover um conteúdo que, de acordo com o entender do Estado, está contemplado no projeto artigo 2º-C; e, por fim,

h) os intermediários são os donos da festa de casamento, e têm todo o direito, em um regime de livre iniciativa e livre concorrência, de retirarem da festa os arruaceiros. Não há qualquer interesse nem deles, nem dos usuários de serem submetidos a conteúdos caluniosos, difamantes e mentirosos. Se as redes de televisão premiam anunciantes de agências para ter o intervalo mais interessante para evitar o zapping do telespectador, a rede social também pode manter, por si somente, saudável sua timeline e seu feed.

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Quando se trata de liberdade de expressão, é sempre preciso analisar o contexto. E o contexto não é bom para o decreto. Eleições nacionais em 2021, perfil de Trump suspenso pelo Twitter e pelo Facebook. Coincidência?

*Marco Antonio Sabino é head de Mídia e Internet de Mannrich e Vasconcelos Advogados. Professor da FIA, Ibmec, Dom Cabral e Fipecafi. Membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OABSP. Doutor pela USP. Pesquisador (Columbia, Oxford). Coordenador do WEBLAB Ibmec

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