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Artigo 19 do Marco Civil: requisito para a democracia na internet

Por João Carlos Velloso
Atualização:
João Carlos Velloso. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal irá decidir, com efeitos próprios do instituto da repercussão geral, se o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14) é constitucional. O dispositivo em questão "determina a necessidade de prévia ordem judicial de exclusão de conteúdo para responsabilização civil do provedor de internet" (1). Ou seja: sob a sistemática do art. 19, os provedores de aplicações (redes sociais) não podem ser responsabilizados se deixarem de atender a pedido de remoção de conteúdo na internet feito por um usuário que tenha se sentido ofendido por determinada manifestação. Em vez disso, as plataformas só estão obrigadas a tirar postagens do ar quando o Poder Judiciário houver reconhecido a ilicitude daquele conteúdo (abuso do direito à livre expressão de pensamento).

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A sistemática introduzida pelo art. 19 do Marco Civil revela a opção deliberada do legislador em proteger a liberdade de expressão na internet. Afinal, a liberdade de expressão, conforme lembra o professor Eduardo Mendonça, "protege, sobretudo, as manifestações de conteúdo crítico, até porque são essas que demandam proteção. Em geral, aquele que sofre uma crítica é que considera, com ou sem razão, ter tido sua honra e imagem violadas e pretende que o terceiro tenha sua liberdade de expressão restringida" (2). Caso houvesse um dever de remoção automática, a partir de mero pedido do usuário que se sentiu ofendido, os provedores de aplicações (redes sociais) seriam obrigados a remover a crítica a pedido do criticado. Assim, toda a qualquer manifestação produzida nas redes sociais correria o risco de ser suprimida e a internet perderia todo o seu potencial de canal difusor de informação.

Vale destacar que diversos países democráticos têm produzido normas nos mesmos termos do Marco Civil da Internet, que também tem sido incorporados por meio de decisões judiciais. Na França, por exemplo, a lei determina que "as pessoas singulares ou coletivas que prestam, gratuitamente ou mediante pagamento, o armazenamento direto e permanente para o fornecimento ao público de sinais, escritas, imagens, sons ou mensagens de qualquer tipo, são criminalmente ou civilmente responsáveis pelo conteúdo desses serviços: se, tendo sido determinado por uma autoridade judicial, elas não agiram prontamente para impedir o acesso a este conteúdo" (3).

Na Alemanha, por sua vez, a legislação torna os provedores de aplicações responsáveis pelo conteúdo produzido por usuários apenas "se primeiro for obtida uma decisão judicial estabelecendo tal ilegalidade (do conteúdo) (4)". No Reino Unido, em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça (High Court of Justice) assentou que o provedor de aplicações não pode ser responsabilizado pelas postagens feitas por seus usuários, "mesmo após notificado de possíveis infrações por aqueles que se sentiram ofendidos" (5).

É claro que o provedor de aplicações terá a prerrogativa de recusar o pedido de remoção quando, por conta própria, entender que aquele conteúdo é protegido pela liberdade de expressão. O problema é que, na ausência da garantia constante do art. 19, a mera possibilidade de vir a ser responsabilizado por não atender à demanda do usuário ofendido produzirá o que ficou conhecido como "efeito inibidor" (chilling effect). Ou seja: os provedores são induzidos a remover o conteúdo que lhes parece lícito pelo receio de vir a ser responsabilizado no futuro pelo Poder Judiciário.

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É importante lembrar que o art. 19 não torna a internet "terra sem lei", fazendo com que aquele que tenha praticado um ilícito não sofra consequências pelos seus atos. Ao contrário: pelo próprio Marco Civil (art. 15), os provedores de redes sociais são obrigados a armazenar dados de seus usuários para, eventualmente, fornecê-los às autoridades policiais e judiciárias para que seja apurado qualquer ilícito.

Também não se discute a remoção daqueles casos em que a ilegalidade do conteúdo é manifesta. Quando a ilicitude do material postado na internet é inequívoca, o Marco Civil determina que o provedor deve retirar esse conteúdo imediatamente, tão logo houver tomado ciência da sua existência (art. 21). Por exemplo, se algum usuário publicar um vídeo contendo cenas de sexo não consentido no YouTube, a vítima desse crime poderá, de forma direta, notificar o provedor para que este remova o conteúdo.

O que o art. 19 protege são manifestações críticas, sobretudo com o objetivo de denunciar malfeitos de agentes públicos. Foi a internet, aliás, que forneceu meios para que o cidadão comum, sem acesso às mídias tradicionais, pudesse se manifestar publicamente contra atos dos agentes públicos.

Por isso, o que se espera é que o Supremo Tribunal Federal reconheça não apenas a constitucionalidade do dispositivo, mas também a sua imprescindibilidade para a realização do potencial democrático que a internet tem no mundo contemporâneo.

[1] Tema 987 da Repercussão Geral.

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[2] Mimeografado.

[3] Loi n. 719/00, art. 43-8. Disponível em www.legifrance.gouv.br.

[4] Informação levada aos autos do RE 1.037.396/SP pela Google Brasil. (§4 (5), NetzDG, disponível em: http://www.gesetze-im-internet.de.

[5] Informação levada aos autos do RE 660.861/MG pela Article 19. Disponível em: http://www.bailii.org.

*João Carlos Velloso é advogado sócio da Advocacia Velloso

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