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Análise de impacto regulatório na Ação Civil Pública

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Por Marcelo Kokke
Atualização:
Marcelo Kokke. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O instituto da ação civil pública no Brasil, que completou seus trinta e cinco anos de formulação a partir da Lei n. 7.347/85, vem assumindo nas últimas décadas não somente uma proeminência em termos de instrumento na tutela coletiva e difusa de direitos, mas também uma centralidade em conflitos jurídicos legiferantes. A ação civil pública foi convertida de mecanismo originariamente voltado para reparação de danos difusos e coletivos em uma via de atração jurídica por meio da qual Ministério Público e Defensoria Pública judicializam políticas e técnicas regulatórias relativas a decisões próprias do Poder Legislativo e do Poder Executivo.

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O problema que se levanta no presente artigo é desnaturação da ação civil pública, que se converteu em fonte de um Estado Jurisdicional que remete ao autor da ação algo similar à outorga de poder de imperium na conformação normativa. O manejo atual da ação civil pública revela uma amplitude indefinida de usos que, alinhada a argumentos retoricamente fortes mas densamente fracos, podem justificar a substituição de critérios técnicos e de legitimidade democrática pela visão de mundo tanto do autor da ação quanto do órgão jurisdicional que venha a julgá-la. A abordagem decisória de comandos prescritivos e acompanhados de multas comumente se socorre de princípios abstratos, quase que em acepção metafisica, para a intervenção em políticas públicas e na redefinição de regras jurídicas programadas para situações concretas.

A ação civil pública é manejada em uma escala próxima de um movimento tenentista judicial, por meio do qual são pregadas visões de mundo em éticas particulares com a pretensão alcançarem escala abrangente. Construções morais personalizadas de justiça se confrontam internamente para com o próprio sistema em vista de propagar vertente definida de justiça que se queira implementar por meio do Poder Judiciário, a relento das atribuições do Poder Legislativo e do Poder Executivo.

Exemplos não faltam. Emblemática é a ação civil pública na qual a Defensoria Pública pretende interferir em critério de contratação de empresa que lançou programa de trainee voltado para negros. Tramita na Justiça Federal de Belo Horizonte ação civil pública na qual se pretende que o Poder Judiciário avoque a si atribuição de nomear interventor em empresa privada, e em São Paulo ação civil pública que pretende vedar a frase "Deus seja louvado" nas cédulas do Real.

Três questões principais podem ser levantadas em curto espaço. O modelo processual, ao albergue de decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, permitiu uma hipertrofia do Ministério Público e da Defensoria Pública em face da Advocacia Privada. É evidente a relevância institucional e democrática tanto do Ministério Público quanto da Defensoria Pública, entretanto, a tutela jurídica de interesses privados não pode ser sujeita a paternalismos normativos. O número de ações coletivas propostas por entes privados é ínfimo em relação às propostas pela Defensoria e principalmente pelo Ministério Público. A hipertrofia pública nas postulações enfraquece uma participação efetiva da sociedade civil na postulação de seus direitos por seus representantes institucionais diretos.

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Um segundo fator é preocupante. A independência funcional, concebida constitucionalmente para garantir a autonomia dos órgãos do Ministério Público e da Defensoria em face de pressões ilegítimas, foi convertida em um atomismo deliberativo na definição dos posicionamentos jurídicos. A dimensão da independência funcional ganhou expressão de risco para a unidade institucional e comprometimento da segurança jurídica. Cada membro das instituições pode sustentar posição singular e hermética, comprometendo unidade e previsibilidade. Instituições públicas e privadas permanecem em névoas quando se procura identificar o posicionamento da instituição autora da ACP, e não de seus membros individualizados.

O terceiro fator está entrelaçado aos dois anteriores. O contexto de avanço indistinto da ação civil pública em seus campos de aplicação, somado às questões institucionais e de paternalismo jurídico-processual do Estado, acentua a instabilidade e comprometimento dos marcos regulatórios públicos. O paradoxo se impõe quando analisada a Lei n. 13.874/19, que estabelece a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. O artigo 5º da Lei estabelece que propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos serão precedidas de realização de análise de impacto regulatório. A análise visa aferir fatores positivos e negativos da edição ou alteração de normas, tanto sob o aspecto social, quanto econômico, com óbvios efeitos inclusive sobre o meio ambiente em um cenário de economia ambiental ou economia ecológica.

Se por um lado é necessário um amplo estudo e avaliação técnica especializada para aferir efeitos e impactos regulatórios de normas editadas pelos poderes legiferantes, pouco se cobra a mesma escala de razão quando se trata de decisões judiciais. O impacto regulatório de uma decisão judicial que suspenda uma norma ou que determine uma atividade é drástico e estabelece uma instabilidade funcional, principalmente porque a decisão judicial está confinada ao teor do processo, ao passo que tanto o Legislativo quanto o Executivo levam em conta o caráter sistêmico e complexo de produção dos efeitos de uma atuação regulatória.

O campo de obscuridade se abre na medida em que é possível que determinada visão ou perspectiva de bem-viver singularizada em uma ação civil pública seja acolhida por um órgão jurisdicional e possa vir a suplantar toda uma avaliação sistêmica de impacto regulatório afeta à norma que se vê confrontada judicialmente. Em esfera judicial, a Advocacia Pública, tanto por meio das Advocacias dos Estados quanto por meio da Advocacia-Geral da União, cumprindo sua função de carreira de Estado, antepõem a este risco de instabilidade a necessidade de contenção judicial e delimitação de campo da ação civil pública. Na linha de precedentes do Supremo Tribunal Federal, é necessário resguardar a esfera própria de competência da Administração Pública.

A ação civil pública precisa ser repensada em seu ônus argumentativo, refletida em seu campo de atuação. Isto não significa mitigá-la, mas sim racionalizar seus efeitos no Estado Democrático de Direito. Se cabe ao Poder Legislativo e ao Executivo aferirem em análise de impacto regulatório alterações ou edições de normas, também caberá aos legitimados da ACP e ao próprio Poder Judiciário enfrentar em avaliação de impacto regulatório os efeitos de suas pretensões e decisões tanto sobre a Administração Pública quanto sobre setores econômicos e sobre a sociedade como um todo. O processo judicial não pode se converter em fonte de prevalência de doutrinas abrangentes, asfixiando os papéis institucionais dos órgãos reguladores no marco normativo constitucional.

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*Marcelo Kokke é procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU), pós-doutor em Direito Público - Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela - ES, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio, especialista em processo constitucional e em Ecologia e Monitoramento Ambiental, além de professor da Faculdade Dom Helder Câmara, Uni-BH e IEC-PUC Minas

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