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Americanismo, Ministério Público e cidadania no Brasil

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Por Victor Missiato
Atualização:
Victor Missiato. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Ao final da Grande Guerra (1914-1918), o mundo assistiu ao surgimento da primeira grande potência ocidental não europeia a hegemonizar um projeto moderno e universal de sociedade. Nas costas ocidentais e orientais dos EUA nascia um modo de produção econômico-cultural que viria a ser denominado americanismo, conceito este tão trabalhado por Antonio Gramsci, e utilizado por diversos intelectuais brasileiros, entre eles, o sociólogo Luiz Werneck Vianna. Muito além da questão nacional, o americanismo globalizou-se e metamorfoseou-se em uma visão de mundo. Dentre suas principais características, podemos ressaltar o individualismo moderno, o liberalismo político e econômico, a importância do ativismo judiciário na construção da sociedade civil, bem como valores inerentes à tradição protestante na modernidade.

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No Brasil, a interpretação deste conceito foi muito influenciada, também, pelas análises categoriais do sociólogo alemão Max Weber, que impactou decisivamente na escrita de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Apresentada nos anos 1930, essa obra representou, durante décadas, o perfil dualista do desenvolvimento brasileiro, que buscava romper com a tradição ibérica e revolucionar sua História a partir de uma nova modernidade americanista. Dessa composição político-teórica, convencionou-se falar em modernização conservadora a fim de interpretar o desenvolvimento brasileiro entre os anos 1930-1980, quando o país alcançou a modernização sem o moderno, segundo Werneck Vianna. Todavia, a partir do final do Regime Militar, na década de 1980, inaugurou-se uma nova cultura política no país. Desde o início dos movimentos das Diretas Já! e, principalmente, com a Constituição de 1988, o americanismo brasileiro descolou-se das raízes do Estado para florescer enquanto cultura política da sociedade civil.

De lá pra cá, mudanças no perfil político, cultural, econômico e religioso da sociedade brasileira passaram a conviver, também, com transformações profundas na cultura jurídica do país. No texto "Revolução Processual do Direito e Democracia Progressiva", presente no livro A democracia e os Três Poderes no Brasil (UFMG, IUPERJ/FAPERJ, 2002) Werneck Vianna e o sociólogo Marcelo Burgos analisaram o contexto da transformação americanista do poder judiciário brasileiro. Para os autores, "o federalismo e a separação de Poderes, com a criação de um tribunal superior independente quanto à representação política, importando a novidade na arquitetura republicana da institucionalização de mecanismos de checks and balances, foi o que definiu o excepcionalismo americano" na modernidade (p. 364-365). Posteriormente, tal arquitetura jurídica passou a compor a estrutura da nossa Carta de 1988, "em particular quando esta define a forma de participação da sociedade civil no controle da constitucionalidade das leis e nos instrumentos processuais destinados à proteção de direitos substantivos coletivos e difusos" (p. 381).

No caso da Constituição de 1988, uma das grandes novidades foi o aumento da representatividade do Ministério Público (MP) sendo uma "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (1988). A partir daí, o MP recebeu poderes nunca antes ligados à sua prerrogativa como, por exemplo, sua função de promover, privativamente, a ação penal pública e requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, entre outras atividades. Ao se destacar enquanto promotor de uma ação civil pública, o MP começou a ganhar destaque na luta contra a corrupção no país, pois suas atribuições cresceram com a nova dimensão da cidadania no Brasil. Fiscalizar, aperfeiçoar mecanismos de investigação e responsabilizar agentes políticos e agentes públicos junto ao Judiciário, passou a compor um dos pilares da instituição. Certamente, quando analisamos essa relação entre Ministério Público, cidadania e sociedade civil no Brasil, constatamos uma profunda alteração no modo como o combate à corrupção passou a ser tratado. Embora a Lava Jato tenha se destacado na percepção popular na luta contra a corrupção, centenas de outras operações também resgataram milhões de dólares aos cofres públicos.

Sem deixar de levar em consideração as críticas referentes ao ativismo judiciário, bem como os próprios excessos dessas operações, nota-se que o engajamento do MP, a partir da Constituição de 1988, tem contribuído na resolução de problemas ligados ao patrimonialismo brasileiro. Embora a percepção nacional acerca da corrupção no país continua elevada, ao vermos os dados da Transparency International (2020), a atuação do MP nessas últimas três décadas nos auxilia a compreender a transformação que o sistema judiciário brasileiro atravessa, tendo como eixo norteador a própria mudança cultural do país no século XXI.

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*Victor Missiato, doutor em História pela Unesp (Franca), professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie/Brasília e membro do Grupo Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca)

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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