Rogério Tadeu Romano*
22 de fevereiro de 2022 | 11h00
Rogério Tadeu Romano. FOTO: ARQUIVO PESSOAL
O conceito de enfiteuse vem muito bem assentado por Lafayette, Teixeira de Freitas, Lacerda de Almeida, Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, Serpa Lopes, que aduzem que se trata de um direito real e perpétuo de possuir, usar e gozar de coisa alheia e de emprega-la na sua destinação natural sem destruir a substância, mediante o pagamento de um foro anual e invariável.
A enfiteuse revela total amplitude, que retira, como disse Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, volume IV, 2ª edição, 1974, pág. 207), ao proprietário quase todas as faculdades inerentes ao domínio, deixando-lhe somente alguns resquícios externos, como afirmaram Hedemann, Lafayette, Lacerda de Almeida).
No direito alemão (BGB de 1896), a enfiteuse não encontrou abrigo, como a maioria das formas hereditárias e feudais do direito germânico, como ensinaram Enneccerus, Kipp e Wolff, Tratado, Derecho de Cosas, volume II, parágrafo 104, XIII.
Da definição que se apresentou resulta a sua perpetuidade como elementar a caracterização sem a qual não passaria de arrendamento, um direito pessoal. Por essa razão, no direito brasileiro, não cabe ajustar-se por prazo certo, ainda que longo, ou por vida ou vidas, como se admitia no direito civil anterior (Alvará de 3 de novembro 1759), ou como ainda informavam Planiol e Ripert para o direito francês.
Mas, sem embargo da perpetuidade admite-se o seu resgate.
Além de perpétuo o aforamento e indivisível em benefício do senhorio direto, no sentido de que o vínculo enfitêutico não se fraciona na hipótese de passagem a diversos foreiros, seja por efeito de transmissão, seja por qualquer outra causa.
Mas, a indivisibilidade não é, todavia, um dos atributos da enfiteuse.
Fala-se que o aforamento somente poderá incidir sobre terrenos ocultos ou abandonados a cuja utilização se destina; ou terrenos não edificados, mas destinados à construção, como um estímulo econômico a quem os promova. Mas, modernamente, o instituto é superado, com imensas outras conveniências, pelo direito real de superfície (previsto no atual Estatuto das Cidades), pela concessão de um direito real de uso.
Lafayette (Direito das Coisas, parágrafo 142) advertia que não se pode confundir enfiteuse e o imóvel sobre que incide. A primeira é um direito real incorpóreo tendo como objeto coisa alheia e se distingue do bem ou da coisa corpórea a que adere.
São direitos e deveres do enfiteuta:
Por outro lado são direitos e deveres do senhorio direito:
Extingue-se a enfiteuse:
Na matéria foi notável a lição do Ministro José Carlos Moreira Alves, quando do julgamento do RE 82.106 – PR, m.v. em 1º de julho de 1977, do qual se extrai o que segue:
A enfiteuse tinha precedentes históricos muito antigos.
Pode remontar à possessio do ager públicus, que era dividido e entregue a cidadãos, vendido ou passível de livre ocupação. Remonta a locatio dos agri vectigales. Os agri vectigales eram as terras do Estado, dos municípios, e dos colégios de sacerdotes dadas em locação perpétua ou a longo prazo, mediante um aluguel chamado vectigal.
Ao locatário, concedeu-se igualmente uma ação real, análoga à rei vindicatio. Ele era considerado possuidor e adquiria os frutos para a mera separação, como o proprietário, mas perdia o seu direito se deixasse de pagar o vectigal.
Diverso era o ius perpetuum, que era uma locação perpétua, que se apresentava com semelhanças à enfiteuse, a ponto de ser com ela, por volta do século IV ou V, confundida. Era, a princípio, perpétua, mas revogável por falta de pagamento do aluguel. Seu objeto eram as terras que pertenciam ao domínio privado do Estado e, mais tarde, às próprias terras privadas. Originava-se das cidades gregas, onde era praticado pelo menos cinco séculos antes de Cristo.
A enfiteuse atingia as terras do Estado e depois de particulares.
Justiniano fundiu a locação do ager vectigales com a enfiteuse, conservando este último nome para designar o instituto em que ele introduziu modificações substanciais. Tornou-se um direito real alienável, transferido a herdeiros, onerável por outros direitos reais, como servidão ou hipoteca, usufruto ou subenfiteuse.
O enfiteuta era considerado possuidor e, como o proprietário, adquiria os frutos com a simples separação. Tinha o pleno gozo do imóvel, mas não podia deteriorá-lo.
Justiniano impôs ao enfiteuta a obrigação de notificar o proprietário da alienação, dos ius emphyteuticum e de lhe dar preferência em condições iguais. Essa preferência o proprietário devia exercer em dois meses, ficando o enfiteuta livre para alienar àquele o direito de receber um quinquagésimo do preço, ou seja, dois por cento. Na idade média, deu-se a essa expressão o nome de laudêmio.
A enfiteuse podia ser constituída por contrato, no qual era lícito alterar os direitos e as obrigações normais salvo, a do cânon; por ato de última vontade, como o legado e a doação causa mortis e pela prescrição. Sabe-se que a donatio causa mortis podia ser feita fora do testamento, dispensava a capacidade de testar (o filho-família podia doar mortis causa a seu pai) e independia da adição da herança, bastando, para aperfeiçoar-se, a morte do testador.
A sua revogação, a princípio, somente era possível se determinada por uma cláusula expressa, em que se previsse a pré-morte do donatário ou a convalescença do doador. Todavia, segundo ensinou Ebert Chamoun (Instituições de direito romano, 1968, pág. 520), no Baixo Império, em virtude do movimento de aproximação das doações mortis causae com os legados, a cláusula de revogação era sempre subentendida e elas são plenamente revogáveis ao arbítrio do doador, escapando à disciplina das doações e introduzindo-se no sistema das disposições testamentárias, acostando-se aos legados, nos quais acabam por assimilar-se.
As ações que o enfiteuta podia intentar para defender os seus direitos eram, no direito de Justiniano, todas as ações inerentes à propriedade, concedidas como utiles; a utilis rei vindicatio, a actio confessória utilis e a actio negatória.
A enfiteuse cessava pelos mesmos modos que a superfície e ainda pela decadência.
A enfiteuse tinha precedentes históricos muito antigos.
Pode remontar à possessio do ager públicus, que era dividido e entregue a cidadãos, vendido ou passível de livre ocupação. Remonta a locatio dos agri vectigales. Os agri vectigales eram as terras do Estado, dos municípios, e dos colégios de sacerdotes dadas em locação perpétua ou a longo prazo, mediante um aluguel chamado vectigal.
Ao locatário, concedeu-se igualmente uma ação real, análoga à rei vindicatio. Ele era considerado possuidor e adquiria os frutos para a mera separação, como o proprietário, mas perdia o seu direito se deixasse de pagar o vectigal.
Diverso era o ius perpetuum, que era uma locação perpétua, que se apresentava com semelhanças à enfiteuse, a ponto de ser com ela, por volta do século IV ou V, confundida. Era, a princípio, perpétua, mas revogável por falta de pagamento do aluguel. Seu objeto eram as terras que pertenciam ao domínio privado do Estado e, mais tarde, às próprias terras privadas. Originava-se das cidades gregas, onde era praticado pelo menos cinco séculos antes de Cristo.
A enfiteuse atingia as terras do Estado e depois de particulares.
Justiniano fundiu a locação do ager vectigales com a enfiteuse, conservando este último nome para designar o instituto em que ele introduziu modificações substanciais. Tornou-se um direito real alienável, transferido a herdeiros, onerável por outros direitos reais, como servidão ou hipoteca, usufruto ou subenfiteuse.
O enfiteuta era considerado possuidor e, como o proprietário, adquiria os frutos com a simples separação. Tinha o pleno gozo do imóvel, mas não podia deteriorá-lo.
Justiniano impôs ao enfiteuta a obrigação de notificar o proprietário da alienação, dos ius emphyteuticum e de lhe dar preferência em condições iguais. Essa preferência o proprietário devia exercer em dois meses, ficando o enfiteuta livre para alienar àquele o direito de receber um quinquagésimo do preço, ou seja, dois por cento. Na idade média, deu-se a essa expressão o nome de laudêmio.
A enfiteuse podia ser constituída por contrato, no qual era lícito alterar os direitos e as obrigações normais salvo, a do cânon; por ato de última vontade, como o legado e a doação causa mortis e pela prescrição. Sabe-se que a donatio causa mortis podia ser feita fora do testamento, dispensava a capacidade de testar (o filho-família podia doar mortis causa a seu pai) e independia da adição da herança, bastando, para aperfeiçoar-se, a morte do testador.
A sua revogação, a princípio, somente era possível se determinada por uma cláusula expressa, em que se previsse a pré-morte do donatário ou a convalescença do doador. Todavia, segundo ensinou Ebert Chamoun (Instituições de direito romano, 1968, pág. 520), no Baixo Império, em virtude do movimento de aproximação das doações mortis causae com os legados, a cláusula de revogação era sempre subentendida e elas são plenamente revogáveis ao arbítrio do doador, escapando à disciplina das doações e introduzindo-se no sistema das disposições testamentárias, acostando-se aos legados, nos quais acabam por assimilar-se.
As ações que o enfiteuta podia intentar para defender os seus direitos eram, no direito de Justiniano, todas as ações inerentes à propriedade, concedidas como utiles; a utilis rei vindicatio, a actio confessória utilis e a actio negatória.
A enfiteuse cessava pelos mesmos modos que a superfície e ainda pela decadência.
O Código Civil de 2002, ao contrário do anterior revogado, de 1916, não previu o instituto no direito brasileiro. Mas o manteve com relação a seu regime jurídico ordenado nos contratos ali firmados que, no entendimento dos seus titulares, lhes dão direito adquirido diante de atos juridicamente perfeitos.
No caso da cidade de Petrópolis, os descendentes do imperador Pedro II recebem um valor chamado laudêmio, que constitui um percentual de 2,5% sobre o valor das transações imobiliárias no município de Petrópolis. Ele é comumente referido na imprensa como “imposto do príncipe”, ou “taxa do príncipe”.
Pois bem.
O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) apresentou projeto de lei objetivando reverter a cobrança do laudêmio para o poder público municipal.
Tem-se do que disse o Estadão (O que é o laudêmio cobrado em Petrópolis?, em 19 de fevereiro de 2022):
“A Companhia Imobiliária de Petrópolis tem o direito de receber dois tipos de pagamento enquanto titular. O primeiro, menos conhecido, é um foro ou pensão anual. O segundo é o laudêmio, que é o valor devido quando da alienação do domínio útil.
A cobrança do laudêmio ocorre porque a família “imperial”, enquanto titular do direito de propriedade, poderia optar por adquirir o domínio útil para si, desde que pelo mesmo preço e nas mesmas condições em que o bem foi posto à venda. Caso opte por não exercer essa preferência na compra, o que normalmente acontece, o laudêmio é devido.
É importante salientar que os descendentes de Pedro II não são os únicos proprietários de imóveis privados em regime de enfiteuse no Brasil. O Código Civil de 2002, atualmente em vigor, proibiu a constituição de novas enfiteuses, mas as existentes permanecem, e continuam sujeitas ao regime jurídico do Código Civil anterior, de 1916.”
Penso que a solução passa pela possibilidade de aplicação do direito de resgate mesmo às enfiteuses constituídas antes do Código Civil de 1916.
É certo que dúvida se levantou quanto ao poder de resgate aos aforamentos constituídos anteriormente ao Código Civil de 1916, conhecido como Código Beviláqua.
Sustentando a inaplicabilidade Epitácio Pessoa e ainda Clóvis Beviláqua, em comentário ao artigo 693 do Código Civil. Trago ainda no mesmo sentido a opinião de Paulo Lacerda (Manual do Código Civil, volume I, Introdução, pág. 111, nota 35).e ainda, dentre outros, o ministro Orozimbo Nonato, no julgamento do RE n. 7.560. Tem-se ainda as opiniões de Gondim Filho, Bento de Faria, Hahnnemann Guimarães e ainda Barros Monteiro (Curso de Direito das Coisas, pag. 246).
É certo que João Luiz Alves (O resgate do foro enfiteutico, in Revista de Direito, volume 47, pág. 484) e ainda Espínola e Espínola Filho (Tratado de Direito Civil Brasileiro, volume II, nº 343, e nota i, defenderam a aplicação imediata do Código Civil aos aforamentos pretéritos. Reporto que Eduardo Espinola e ainda Eduardo Espínola Filho fundam a sua posição na obra de Roubier com relação ao efeito imediato da lei e de Gabba de se reconhecer à lei a faculdade de regular de novo as enfiteuses perpétuas. Como bem disse Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 217), reportando-se a esses últimos autores, e, depois de mostrar que ambas as correntes invocam a doutrina de Carlo Gabba, lembrou que defendeu Orizombo Nonato a aplicação do Código às enfiteuses constituídas antes de sua vigência, fundado em que as leis abolitivas têm inevitável proteção retroperante.
O Supremo Tribunal Federal, por fim, ao examinar a matéria fixou o entendimento à luz da Súmula 170:
“É resgatável a enfiteuse instituída anteriormente à vigência do Código Civil”.
Repito que Clóvis Beviláqua e Paulo de Lacerda, examinando o artigo 693 do Código Civil de 1916, assentaram, com apoio em Gabba, que esse dispositivo não se aplica aos aforamentos constituídos antes da vigência do Código Civil.
Porém, ao final, explicito que a matéria ainda pende, como de há muito, de controvérsias.
Caio Mário da Silva Pereira (obra citada, pág. 217 e 218) inclina-se pela extensão do direito de resgate aos contratos concluídos antes da vigência do Código de 1916, “tendo em vista o proposito que anima o legislador moderno, assim pátrio quanto estrangeiro, de extinguir privilégios que marcaram a vida jurídica do passado. Se a lei encontrasse obstáculo no direito adquirido (Gabba) ou na situação jurídica constituída (Roubier) jamais se extinguiriam esses institutos que o legislador considera nocivos aos interesse social e contrários ao progresso do pais, como a escravidão, a cátedra vitalícia e, no particular, da enfiteuse, a cobrança de laudêmio, a irresgatabilidade do foro”. Aliás, é antiga a luta contra o laudêmio, como já se via nas tentativas legislativas em Portugal, como se viu no Código de 1966, que entrou em vigor em 1967. Na Itália, pelo Código de 1942, nenhuma prestação era devida pela alienação do direito do enfiteuta (artigo 965).
Como exemplo, traga-se à colação, no direito comparado, o direito italiano, onde o resgate pode sempre ser exercido ainda quanto às enfiteuses constituídas antes do Código que o instituiu, como informa Pietro Germani (Nuovo Italiano, volume Enfiteuse), e independente da estipulação ( Código Civil italiano de 1942, artigo 971).
Veda-se, pois, o direito à renúncia a este poder de resgate, que foi ditada por princípios de ordem pública.
Defende-se, aqui, a aplicação do entendimento pelo resgate dessas enfiteuses criadas anteriormente ao Código Civil de 1916, como meio de extinção de privilégios e pelo fim ainda desses laudêmios. A enfiteuse é um instituto anacrônico que deve ser exterminado do mundo jurídico.
No direito administrativo brasileiro, a enfiteuse, pela forma de aforamento, é aplicável nos chamados terrenos de marinha(que são medidos a partir da linha do preamar médio de 1831 até 33 metros para o continente ou para o interior das ilhas costeiras com sede de município), em razão dos chamados contratos de aforamento entre a União Federal e o particular. A outra forma reconhecida, onde apenas se observa um direito à posse por parte do chamado ocupante legal, é a ocupação, que não gera direito real ao contrário do aforamento.
A reversão desses recursos de laudêmio da família imperial para o Poder Público Municipal, à luz de lei federal, poderá ser estudada, como forma adicional de fonte de recursos para o combate a essas enchentes, mas isso, a princípio, é confisco, prática vedada pela Constituição no direito administrativo, a não ser nos casos de bens apreendidos com investigados por tráfico de drogas, o que não é o caso.
Não se deve esquecer que cabe à administração a responsabilidade civil, por comissão (teoria objetiva) e omissiva (por culpa) por conta desses atos que contribuam para esses desastres ambientais.
*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado
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