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Algumas questões do julgamento do incêndio na Boate Kiss

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Por César Dario Mariano da Silva
Atualização:
FOTO: IMPRENSA TJRS  

Um dos acontecimentos marcantes desta semana foi o julgamento da tragédia ocorrida na Boate Kiss, onde 242 jovens morreram em razão de um incêndio.

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Não vou adentrar o mérito quanto à justiça ou injustiça da condenação, pelo simples motivo de não conhecer os autos e ser leviana qualquer consideração nesse aspecto.

Vários foram os fatores que levaram à tragédia, destacando-se o uso de artefato pirotécnico em local fechado em que fora instalada espuma como isolante acústico, material altamente inflamável e tóxico, além de as saídas de emergência se encontrarem fechadas para que as pessoas não saíssem sem realizar o pagamento. Enfim, ocorreu uma sucessão de erros graves de segurança que ocasionaram a tragédia.

No julgamento, acusação e defesa apresentaram suas teses e os jurados decidiram pela condenação pelos homicídios e tentativas de homicídio com dolo eventual.

As penas fixadas foram de 22 anos e seis meses de reclusão; 19 anos e seis meses de reclusão e 18 anos de reclusão (para dois acusados).

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As questões que levantam dúvidas por aqueles que não atuam no mundo do direito são: o que é dolo eventual e porque as penas foram tão baixas, levando-se em consideração a quantidade de vítimas?

Vou tentar explicar.

A discussão no julgamento teve por mote principal a ocorrência de dolo eventual ou culpa, no caso a consciente. Advindo o reconhecimento da culpa, a pena máxima seria de quatro anos e seis meses de detenção, podendo chegar a seis anos, se houvesse o reconhecimento de alguma causa de aumento de pena (§ 4o do art. 121 do CP), com o regime inicial semiaberto.

De um modo bem simples, culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado. O agente não quer o resultado, mas por agir com imprudência, negligência ou imperícia, dá causa a um resultado, que é previsível para o homem médio, porém não é previsto pelo sujeito. Essa é a culpa inconsciente em que o resultado é previsível ao homem comum, mas deixa de ser previsto pelo agente.

Na culpa consciente, o sujeito também age com imprudência, negligência ou imperícia e dá causa a um resultado involuntário. Só que o resultado é previsto pelo agente, mas não tolerado. Ele sabe que o resultado pode ocorrer, mas espera sinceramente que não ocorra ou que poderá evitá-lo. O evento, embora seja previsto, o agente não quer que ele ocorra, não assumindo o risco de produzi-lo e nem o tolerando. Exemplo: um motorista de fórmula 1 resolve imprimir excessiva velocidade em uma estrada, achando sinceramente que poderá desviar de qualquer objeto que apareça à sua frente, confiando na não produção do resultado, embora esse lhe seja previsível. Porém, surge à sua frente um animal, que acaba ensejando um acidente e a morte do passageiro. O motorista será responsabilizado por homicídio com culpa consciente, uma vez que em momento algum tolerou a produção do resultado.

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No dolo eventual, que muitas vezes se confunde com a culpa consciente, o resultado também é previsto pelo agente, que o tolera. Ele assume o risco de produzir o resultado, que lhe é indiferente. Para ele tanto faz que o resultado ocorra ou não. Ele pensa: se o resultado ocorrer, dane-se.

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Resumidamente, no dolo eventual o resultado é previsto pelo sujeito, que o tolera. Na culpa consciente, o resultado também é previsto, mas não é tolerado pelo sujeito, que espera sinceramente que ele não ocorra. Assim, no dolo eventual o sujeito assume o risco de produzir o resultado, que lhe é indiferente. Já na culpa consciente, embora o sujeito preveja a produção do resultado, ele não o quer e nem assume o risco de produzi-lo.

Os jurados chegaram à conclusão de que os acusados tinham a previsão do resultado (incêndio e morte) e o toleraram, pouco importando para eles que pessoas poderiam morrer. Como o dolo direto e eventual são equiparados pela lei, a pena aplicada para um e outro é a mesma.

E por qual motivo as penas foram tão baixas diante da enormidade de vítimas?

Para o código penal a conduta dos acusados foi única e acarretou as centenas de vítimas. Neste caso, há o denominado concurso formal perfeito de crimes. No concurso formal perfeito, os crimes praticados são oriundos de um só desígnio. O agente, mediante uma só ação ou omissão, dolosa ou culposa, pratica dois ou mais crimes. Se as penas forem idênticas, aplica-se somente uma delas; se diversas, aplica-se a mais grave, mas, em qualquer dos casos, aumentada de um sexto até a metade (art. 70, caput, 1ª parte, do CP). Adotou-se o critério de exasperação das penas. Exemplo: quando, em acidente de trânsito, a imprudência do agente dá causa à morte de duas ou mais pessoas.

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Com efeito, não obstante o resultado, que depende do subjetivismo de quem analisa os fatos e interpreta as normas, os jurados julgaram de acordo com sua consciência e ditames da Justiça, e a dosagem da pena observou o regramento previsto no Código Penal.

*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça - SP. Mestre em Direito das Relações Sociais. Especialista em Direito Penal. Professor universitário. Autor de vários livros, dentre eles Manual de Direito PenalLei de Execução Penal ComentadaProvas IlícitasEstatuto do DesarmamentoLei de Drogas Comentada e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Juruá Editora

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