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Ainda sobre a polêmica graça concedida ao deputado Daniel Silveira

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Por César Dario Mariano da Silva
Atualização:
Presidente Jair Bolsonaro com o deputado Daniel Silveira. FOTO: GABRIELA BILO/ESTADÃO Foto: Estadão

Considerando as manifestações que tenho lido, visto e ouvido acerca da inconstitucionalidade da graça concedida pelo Presidente da República, em sua maioria fruto de pura ideologia, vou tecer alguns comentários de ordem técnica/jurídica.

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A graça é instituto puramente pessoal, porque direcionada a uma pessoa em particular, e ato administrativo discricionário emanado do chefe do Poder Executivo Federal, ou seja, motivado por razões de conveniência e oportunidade (art. 84, XII, da CF). Este tipo de ato administrativo, no mais das vezes, pode ter como vício a forma, e não as razões que o motivaram, justamente a mais importante de suas características.

Dizer que viola o princípio da impessoalidade é desconhecer sua natureza, que é justamente ser ato pessoal, voltado a beneficiar pessoa determinada, diferentemente do indulto coletivo, que alcança todas as pessoas que preencham os requisitos previstos no decreto concessivo.

Evidentemente que não pode haver desvio de finalidade. Explico: não se pode, a pretexto de perdoar alguém por razões políticas ou humanitárias, tendo por detrás a vil intenção de se beneficiar, v.g., pela prática de uma infração penal por si cometida, cuja existência é de conhecimento do agraciado, a fim de que ele se cale e não lhe prejudique.

Diferentemente da anistia, a graça e o indulto coletivo não apagam o fato delituoso; apenas extinguem a punibilidade, reduzem a pena ou a substituem por outra mais branda, permanecendo íntegros os demais efeitos penais e civis da sentença condenatória, como, aliás, reiteradamente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, que editou a Súmula 631, que diz: "O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais".

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Não é possível no decreto concessivo da graça afastar os efeitos secundários da condenação, como a perda do cargo e do mandato. Simplesmente, não haverá o cumprimento da pena ou ela será reduzida. Tal efeito já é consagrado pela doutrina e jurisprudência há décadas. A finalidade dessa forma de indulgência soberana é que o autor da infração penal não cumpra a pena principal, isto é, a privativa de liberdade (ou restritiva de direitos substitutiva) e, se o caso, também não pague a pena de multa, embora, neste último caso, seja duvidosa a possibilidade do perdão, posto que essa espécie de pena pecuniária não deixa de ser dívida de valor e, por isso, crédito tributário dos Estados ou da União, não podendo dela o presidente da República dispor, notadamente quando o crédito é estadual.

Concedida a graça sem a imposição de qualquer condição, ao Magistrado cabe apenas, à vista dos autos do processo e do decreto concessivo, julgar extinta a punibilidade do condenado ou determinar a comutação da pena, ou seja, sua diminuição ou substituição por outra mais branda, dependendo do caso (art. 192 da LEP).

É verdade que para a concessão de indulto ou da graça (indulto individual) é exigido ao menos o trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação.

Como o benefício extingue os efeitos principais da condenação, somente após o esgotamento dos recursos do MP ou do querelante é que será possível saber qual o crime que o sujeito foi condenado e as penas impostas, lembrando que há delitos em que não é possível a clemência soberana, no caso os hediondos e os equiparados. Mesmo havendo recurso da defesa, o benefício pode ser concedido. No caso de ser provido o recurso defensivo e advier a absolvição, a graça ou o indulto perdem efeito e prepondera a decisão absolutória, que é mais favorável.

A concessão da graça ou do indulto antes do trânsito em julgado da condenação não é causa de nulidade e tampouco de indeferimento do benefício. Por economia processual e por não haver nenhum prejuízo para qualquer das partes, basta ao Magistrado condicionar o início de seus efeitos (extinção da punibilidade) ao trânsito em julgado para a acusação ou simplesmente suspender o trâmite do seu processamento até aquele momento, o que se dá quando não couber mais recurso do Ministério Público ou do querelante (no caso de ação penal privada).

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Do contrário, indeferindo-se o benefício, fatalmente será novamente concedida a graça pelo Presidente da República. Assim, seria protelar a concessão do benefício em total prejuízo do condenado, que inevitavelmente será alcançado por ele, exceto se o presidente da República não mais estiver no cargo, cabendo ao seu sucessor decidir a respeito.

Por isso, por economia processual e por não existir nenhum prejuízo a qualquer das partes, não vemos óbice na publicação do decreto da graça, cujos efeitos serão postergados para após o trânsito em julgado do acórdão condenatório.

E quanto à perda do mandato?

Esta situação exige um estudo mais aprofundado e tecerei alguns comentários.

Ao lado do efeito principal da condenação, que é a aplicação da pena, surgem alguns efeitos secundários, que podem ter a natureza penal e extrapenal.

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César Dario Mariano da Silva. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Como efeitos secundários da condenação de natureza penal, poderemos citar: a configuração da reincidência, desde que preenchidos seus requisitos; revogação obrigatória ou facultativa do "sursis" ou do livramento condicional, dentre vários outros efeitos.

Os efeitos secundários extrapenais da sentença condenatória podem ser: a) civis: que é o de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I, do CP); o confisco (art. 91, II, do CP); e a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP); b) administrativos: que é a perda do cargo ou função pública (art. 92, I, do CP) e a inabilitação para a condução de veículos (art. 92, III, do CP); c) político: que é a perda do mandato eletivo (art. 92, I, do CP).

Comentarei apenas o efeito secundário específico da condenação da perda do cargo ou do mandato eletivo, que nos interessa no caso.

Dispõe o art. 92, I, do Código Penal, que haverá a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo quando: a) aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos nos demais casos.

A norma elenca duas situações em que dependendo do crime cometido e da espécie e quantidade da pena aplicada, o funcionário público poderá perder o cargo, a função pública ou o mandato eletivo. São elas:

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1) aplicada ao funcionário público pena privativa de liberdade, por tempo igual ou superior a um ano, pela prática de crime funcional cometido com abuso de poder ou violação do dever funcional. Os crimes funcionais estão previstos nos arts. 312 a 326 do Código Penal e em outros dispositivos elencados no mesmo estatuto (exemplos: arts. 289, § 3º, 300 etc.); 2) aplicada ao funcionário público pena privativa de liberdade, por tempo superior a quatro anos, pela prática de qualquer crime comum.

Anoto que o parlamentar é considerado funcionário público, nos termos do art. 327 do Código Penal.

Como já dito, a graça não afasta os efeitos secundários da condenação, como a perda do mandato. Neste caso, como foi fixado o regime inicial fechado e, por isso, não ser possível o trabalho externo, que fatalmente ensejará a ausência do parlamentar em mais de um terço das sessões ordinárias no ano legislativo (120 dias - art. 55, III, da CF), conforme decisão da própria Excelsa Corte, não haverá necessidade de ser submetida a declaração judicial da perda do mandato à Casa Legislativa, que apenas declarará que houve a perda sem poder dela discordar, com fundamento no art. 55, inciso III, da CF (STF, 1ª Turma, AP 694/MT, Rel. Min. Rosa Weber, j. em 2.5.2017). De qualquer sorte, fatalmente a hipótese será reanalisada pela Excelsa Corte porque o assunto não está pacificado.

Um dos efeitos da condenação, que pode ser considerado genérico, isto é, automático e, por isso, independe de pronunciamento judicial, é o previsto no art. 15, III, da CF, que determina a suspensão dos direitos políticos da pessoa com condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; cumprida ou extinta a pena, o sentenciado terá seus direitos políticos restabelecidos, independendo de reabilitação ou prova de reparação dos danos (Súmula 9 do TSE).

Com isso, como a graça extinguiu a punibilidade e, consequentemente as penas aplicadas ao Deputado (privativa de liberdade e pecuniária), sua capacidade eleitoral ativa e passiva está preservada, podendo concorrer nas próximas eleições.

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Pode ser que o STF entenda que cabe à Câmara dos Deputados analisar a perda do mandato eletivo do parlamentar ou que ocorra a votação do processo de sua cassação por falta de decoro parlamentar. Neste caso, cassado o mandato, daí sim o direito de ser votado (capacidade eleitoral passiva) é suspenso pelo prazo de oito anos, nos termos do art. 1º, inciso I, alínea "b", da Lei Complementar nº 18/1990.

Lembro, ainda, que os crimes pelos quais o Deputado foi condenado não estão previstos na referida lei complementar como causa de inelegibilidade, cujo rol é taxativo.

Observo, apenas, que a coação no curso do processo é crime contra a administração pública em sentido amplo, previsto na Lei Complementar nº 18/1990 como causa de inelegibilidade. Parece-nos, porém, que a norma se refere a crimes funcionais, isto é, aqueles que somente podem ser cometidos por funcionário público, como peculato, corrupção, concussão etc. E a coação no curso do processo, que especificamente é delito contra a administração da justiça, não se enquadra neste conceito, já que pode ser cometido por qualquer pessoa, independentemente de ser, ou não, agente público. A finalidade da norma é afastar da vida política, por determinado prazo (oito anos), o funcionário público que abusa do cargo e pratica crime contra a administração pública. Não havendo relação entre o crime cometido com as funções públicas exercidas, isto é, agindo o condenado como particular, não é razoável ser considerado inelegível.

Em suma, caso não advenha sua cassação pela Câmara dos Deputados e a consequente declaração de sua inelegibilidade, o parlamentar, após o trânsito em julgado do acórdão condenatório, perderá o mandato, como efeito secundário da condenação, mas poderá se candidatar nas próximas eleições, por estar com sua capacidade eleitoral ativa e passiva preservada.

Nada há de irregular, portanto, na concessão de graça pelo Presidente da República, não obstante seja rara sua ocorrência. O comum é a concessão do indulto, que é medida coletiva e atinge aos condenados que preencherem os requisitos previstos no decreto concessivo.

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No que tange à multa cominatória (astreinte) aplicada ao parlamentar, diz respeito ao descumprimento do uso da tornozeleira eletrônica. A aplicação de astreinte no processo penal é medida controvertida; contudo, os tribunais superiores têm entendido sê-la possível por não ser o rol de medidas cautelares diversas da prisão taxativo, além de ser mais benéfica para o acusado ou investigado, tomando-se por parâmetro a decretação da prisão preventiva, que seria a medida cautelar mais gravosa a ser aplicada em razão do descumprimento do uso da tornozeleira eletrônica.

Com efeito, a multa cominatória não é alcançada pela graça concedida pelo Presidente da República por não ter correlação com a sentença condenatória, mas com medida cautelar anteriormente decretada.

Resumidamente, o decreto presidencial concessivo de graça ao Deputado Daniel Silveira é constitucional e legal, ficando dentro da esfera de discricionariedade do Presidente da República, que pode agir por motivação política ou clemência.

*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça - SP. Mestre em Direito das Relações Sociais. Especialista em Direito Penal. Professor universitário. Autor de vários livros, dentre eles Manual de Direito PenalLei de Execução Penal ComentadaProvas IlícitasEstatuto do DesarmamentoLei de Drogas Comentada e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Juruá Editora

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