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Afronta ao Supremo nível civilizatório

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Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

O Supremo Tribunal Federal é uma instituição que nobilita a República Federativa do Brasil. Exerce o papel de frear impulsos insensatos e nefasta intempestividade. Cumpre a sua missão. Algo que fica mais nítido em tempos de peste. Assim como acontece hoje nos Estados Unidos, está a refrear desmandos que poderiam comprometer a higidez da sempre débil Democracia tupiniquim.

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A incompreensão de alguns setores tem razão de ser, mas o fenômeno isenta o STF de qualquer responsabilidade. Ocorre que a Constituição Cidadã, superveniente à fase de autoritarismo que perdurou entre 1964 e 1985, refletiu aspiração nacional por restauração plena do Estado de Direito de índole democrática. Uma Assembleia Nacional Constituinte que não foi originária, mas permitiu que ela continuasse como Parlamento após à elaboração da Carta, não foi a melhor das soluções. De qualquer forma, o resultado foi um texto enorme, com inclusão de temas não necessariamente constitucionais e a obrigatória adoção de fórmulas genéricas.

A Constituição da República de 5.10.1988 é o fruto de compromisso entre posições antagônicas, eis que o Parlamento moderno se assemelha a um verdadeiro feudalismo: cada setor elege seu representante e este nem sempre tem consciência do que venha a ser o bem comum. As leis são respostas pontuais, casuísticas, para questões muito específicas e de interesse do segmento que elegeu sua representação.

Para viabilizar a formulação de propostas, recorre-se à vacuidade dos verbetes, algo que permitiria depois preenchimento do significado ao sabor das ideologias dominantes. Isso foi o que transformou o Brasil na República da hermenêutica, em que a interpretação cumpre o papel de dar exação à vontade fluida, plástica, flexível do texto normativo.

Mercê de tal situação, o STF tem de fazer incidir a vontade concreta da Constituição e, para atender a uma demanda localizada, sua decisão vai contrariar interesses atingidos.

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Não se cuida de ativismo judicial, portanto, mas do estado de necessidade em que a Corte Suprema se encontra, quando vai interpretar a vontade da Constituição. Sua função precípua é ser a guardiã do pacto federativo.

Não resignar-se com a decisão é natural. O antinatural é se servir de patrulhas digitais, de ira esfuziante, de violência verbal e de ofensas grosseiras, como tem ocorrido recentemente. Isso não é liberdade de expressão, mas manifesta demonstração de retrocesso no grau civilizatório de uma Nação que resiste em se tornar democraticamente adulta.

Legítimo o direito de exprimir desacordo com o funcionamento do Supremo. Sou crítico, por exemplo, da perda do sentido de colegiado. Não é de hoje que um excessivo protagonismo individualístico e narcisista parece ter levado as sessões a um exibicionismo retórico desgastante. Sempre invejei a Corte Suprema do Japão, que se reúne a portas fechadas, oferta decisões sintéticas, sem voto vencido. Esse o papel de um Supremo Tribunal.

Não considero benéfica a transmissão direta dos julgamentos, que prolongam o exercício da eloquência, para mostrar uma erudição desnecessária. Os juízes do STF já têm seu currículo definido. Chegaram lá, presumivelmente, pelo conteúdo de uma vida devotada à ciência jurídica. Não precisam mostrar conhecimento. Precisam, sim, é decidir.

O tempo que se investe na manifestação individual de cada tema, com a dificuldade de se procurar brilhar mais do que o prolator do voto anterior, desprestigia a eficiência. Um Supremo existe para sinalizar à Nação o que vale ou o que não vale. Só isso.

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Lamento, ainda, que o STF se resigne a ser Segunda Instância dos Juizados Especiais e não decline de competências que o convertem na quarta instância de um país em que o Judiciário é excessivamente lento. Lentidão que serve mais ao infrator, àquele que não quer cumprir com suas obrigações, a quem obtém, na litigância judicializada, o tempo que o mercado não oferece. É uma Justiça que, nesse caso, aflige ainda mais o aflito, o sedento de Justiça que chega a se desesperar pela falta de solução.

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Considero também equivocada a possibilidade de se paralisar um julgamento com pedido de vista sem prazo. Ou com o uso indiscriminado da repercussão geral, que paralisa milhares de processos nas instâncias inferiores, deixando a Nação às cegas.

Tudo isso mereceria revisão por parte do Legislativo. Mandato para ministros? Nova forma de seleção de seus integrantes? Temas para discussão parlamentar.

Nada justifica, entretanto, a falta de compostura, a perda dos protocolos de etiqueta que permeiam o uso do direito, o rebaixamento de atitudes cidadãs e o abuso do mau gosto, da mediocridade e da chulice que atolam os canais de que se servem os detratores.

Pretender um Supremo melhor é algo que dignifica o bom brasileiro. Mas pelos caminhos oferecidos pelas vias democráticas. Nunca por essa nefanda profusão de fealdades vernaculares, testemunho muito expressivo de retrocesso do nível civilizatório no Brasil. Mais um atestado do quanto faz falta levar a educação de qualidade a sério nestes trópicos.

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*José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2019-2020

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