Vera Chemim*
15 de janeiro de 2019 | 06h00
Vera Chemim. Foto: Arquivo Pessoal
O decreto a ser publicado sobre a flexibilização da posse de armas para o cidadão comum está sendo objeto de questionamentos de toda a ordem, por falta de maiores informações acerca da sua eficácia e validade jurídicas.
De todas as espécies normativas existentes no atual ordenamento jurídico brasileiro, o decreto não está presente, uma vez que se trata de um ato administrativo de competência privativa do chefe do Poder Executivo, para regulamentar dispositivos legais, cuja redação e entendimento são abstratos e genéricos e necessitam pois, de regras que os tornem concretos e precisos, para o seu devido cumprimento.
A figura do decreto presidencial carrega consigo um ranço que remete aos governos militares, desde 1964 até meados dos anos 1980, quando o temido “decreto-lei” se impunha ao Congresso Nacional, dependendo apenas da vontade soberana do presidente da República.
Atualmente, o artigo 59, incisos I a VII, da Constituição Federal de 1988 prevê numa escala hierárquica, que o processo legislativo compreende a emenda constitucional, as leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.
Cada uma daquelas espécies normativas exige o atendimento de determinados requisitos para a sua aprovação no Poder Legislativo, ratificando em caráter definitivo o Estado Democrático de Direito.
Porquanto, quaisquer daquelas espécies demanda a participação do Poder Executivo e do Poder Legislativo, sem descurar se necessário, do Poder Judiciário, enquanto poder moderador.
Trata-se pois, do respeito ao Princípio de Separação dos Poderes Públicos, como condição sine qua nom para a normalidade do processo democrático.
Independentemente da pecha que envolveu o decreto-lei, o decreto de hoje nada tem a ver com aquele regime ditatorial.
Em primeiro lugar, o decreto serve apenas para disciplinar conforme já comentado, uma lei ou alguns dispositivos legais que clamam por maior precisão e concretude para se tornarem efetivamente eficazes e válidos.
O debate acerca do atual decreto que pretende regulamentar alguns dispositivos da Lei n.º 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento – para facilitar a posse de armas pelo cidadão comum, desde que atendidas algumas condições que serão especificadas naquele decreto precisa ser melhor entendido do ponto de vista jurídico.
A despeito do surgimento de algumas críticas sobre a sua eficácia e validade e por consequência, do fato de estar pretensamente se sobrepondo a uma lei necessita de um oportuno esclarecimento.
O decreto não tem a função de modificar um diploma legal e sim, de criar regras com o fim de regulamentar as normas abstratas ou genéricas constantes em leis.
Antes que se remeta à compreensão do atual decreto presidencial, urge que se classifiquem dois tipos de decretos de competência privativa do chefe do Poder Executivo.
O inciso VI, do artigo 84, da Carta Magna dispõe sobre o denominado “decreto autônomo”, quando o presidente da República pode expedir aquele decreto, desde que disponha apenas, sobre duas situações previstas respectivamente, nas alíneas “a” e “b” do referido inciso, quais sejam:
– “sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”;
– “extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”.
Assim, o decreto autônomo, isto é, o decreto editado independentemente de lei – que não é admitido pela Constituição brasileira – pelo fato inequívoco de que se vive em um regime democrático, só pode ser expedido pelo presidente da República, excepcionalmente naquelas duas situações.
O segundo tipo de decreto presidencial é o chamado “decreto regulamentar” previsto no inciso IV, do mesmo artigo da Constituição Federal de 1988, cuja redação é clara, quanto à competência privativa do presidente da República, em:
– “sancionar, promulgar e fazer publicar leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
O decreto regulamentar tem como função precípua, explicar, detalhar e estabelecer condições específicas e concretas para que uma lei seja corretamente executada.
Trata-se de um instrumento, cujo objetivo é formatar e orientar quanto aos procedimentos relativos a uma legislação já editada.
Sendo assim, o decreto regulamentar tem a sua validade condicionada à existência da lei que ele pretende regulamentar.
Portanto, o regramento contido em um decreto é limitado à matéria prevista em lei, não podendo extrapolar daquele conteúdo, criando ou extinguindo direitos, obrigações ou mesmo atribuições que não dizem respeito à lei, sob pena de ser questionado em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
No atual caso, o decreto que flexibiliza a posse de armas é regulamentar, uma vez que pretende estabelecer regras e procedimentos quanto aquele tema, ancorado no conteúdo da Lei n.º 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).
É oportuno lembrar que em 2004 o ex-presidente da República (Lula) editou com o mesmo propósito o decreto n.º 5.123/2004, correspondente ao Estatuto do Desarmamento, com o objetivo de restringir a posse de armas, diferentemente do decreto de agora que facilita aquela posse, desde que atendidos alguns requisitos cumulativos.
A despeito das críticas que se fizeram presentes, quando da edição do decreto de Lula, sob o argumento de que o referido decreto havia ultrapassado os seus limites legais, ao estabelecer maiores restrições que não estavam previstas no Estatuto do Desarmamento, o importante no presente momento é que no atual contexto político-institucional, o futuro decreto do governo Bolsonaro vá realmente ao encontro da “vontade da maioria” que o elegeu, cujo pano de fundo é a urgente satisfação da necessidade de segurança pública, apesar das limitações atinentes ao tema, considerando-se que ainda se tem muito o que fazer para garantir aquela tão buscada segurança.
*Vera Chemim, advogada constitucionalista
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