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Afinal, o jogo de pôquer é contravenção penal?

Por Eduardo Samoel Fonseca e Sean Kompier Abib
Atualização:
Eduardo Samoel Fonseca e Sean Abib. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A adoção da quarentena em razão da pandemia de Covid-19 tem produzido sensíveis efeitos no campo do direito penal, seja no que diz respeito à redução de delitos contra o patrimônio; seja em relação ao aumento de ocorrências envolvendo tanto a violência contra a mulher no âmbito doméstico quanto à prática e promoção de jogos de azar - com o enquadramento do pôquer nessa modalidade contraventora.

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Sobre a temática exploração de jogos de azar, o que aqui será objeto de algumas reflexões, é que tal fato se dá não em função de uma política criminal voltada à reprimir essa modalidade de contravenção - até porque pende no Congresso Nacional uma discussão mais aprofundada sobre o tema (MP n.º 923/20) -, mas sim por força da intensificação das medidas de saúde adotadas pelos órgãos de vigilância sanitária em locais de alta aglomeração, pois, em razão da natureza destes ambientes, deveriam estar fechados para conter o avanço do novo coronavírus, o que acaba por criminalizar jogadores e promotores do esporte, como noticiado pelo Estadão[1].

A par dessa motivação, indaga-se: afinal, o jogo de pôquer é contravenção penal?

Antes de enfrentarmos o presente questionamento é preciso compreender o que se entende por jogo de azar a partir da legislação pátria. Segundo o disposto no art. 50 da Lei n.º 3.688/41, incorre em contravenção penal aquele que estabelece ou explora jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele, definindo-se, como jogos de azar, a prática cujo ganho ou perda dependam exclusiva ou principalmente do fator sorte (§ 3º, letra a, do citado artigo).

Apesar de parecer claro o contorno de incriminação, até mesmo os jogos de exclusivo azar - como roleta ou caça-níquel - tem sua legalidade discutida perante a Suprema Corte brasileira. O tema 924 da Repercussão Geral (leading case: Recurso Extraordinário n.º 966.177/RS) busca definir se qualquer jogo que emprega sorte ou azar para fins de ganhos patrimoniais pode ser considerado contravenção penal sob o prisma da constitucionalidade, de modo que tal discussão paralisou (ou deveria paralisar) todos os demais casos relacionados à matéria, como define a Lei (art. 1.035, § 5.º, CPC/2015).

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É nesse ímpeto de ver todo desporto que envolve ganhos patrimoniais, com sorte ou azar, que o pôquer, de forma totalmente equivocada, ingressou nessa baila. É evidente que todo esporte - seja pôquer ou bocha - tem o aleatório como ingrediente fabuloso. Do contrário, o que seria da célebre final da Libertadores de 1976 em que Joãozinho, ponta direito do Cruzeiro, bate a falta antes de Nelinho para marcar, aos 46 minutos do segundo tempo, o gol da vitória contra o River Plate? Ou, na recente memória, o que seria da nação corintiana se Diego Souza, atacante vascaíno que ficou frente a frente com o goleiro Cássio, tivesse pegado um pouquinho melhor na bola e marcado o gol que impediria o título inédito da Copa Libertadores da América em 2012?

Por isso, sorte e azar são ingredientes que fazem parte da vida humana e do esporte, mas, particularmente no caso do pôquer, não ditam o ritmo do jogo. Ao contrário disso, a partida gira em torno do confronto de habilidades psicológicas e raciocínio lógico-matemático entre jogadores, o que é comum na maioria dos esportes. Conta, para um jogador de pôquer, não o acaso e o impossível; mas sim suas habilidades em envolver os adversários em blefes, induções e manobras arriscadas cujo prêmio é toda a monta que os jogadores destinam colocar em jogo.

No pôquer, a probabilidade não trabalha em desfavor do jogador, e sim determina a aleatoriedade da distribuição de cartas que depois será trabalhada pela habilidade de cada um, e justamente por isso versa sobre um combinado de habilidades que seduz não somente ambiciosos em busca de proveitos, mas sim empresários, atletas de altíssimo rendimento, celebridades, os quais possuem um denominador comum: o desejo de replicar o sucesso de suas carreiras em poucas horas de jogo.

Sendo, portanto, o pôquer um jogo de avaliação psicológica, que exige capacidade de efetuar rápidos cálculos matemáticos, leitura de intenções ocultas do adversário, admitindo-se inclusive o "blefe" (capacidade de induzir o oponente), como então inseri-lo na categoria jogos de azar dependente do fator sorte? Ainda que possa existir uma indisposição para com os ganhos fáceis advindos de jogos envolvendo apostas, o pôquer não tem nada em comum com tais propostas destinadas a promover o aleatório.

É dizer, o pôquer não integral o rol ilimitado e imaginário de jogos azar, isso inclusive se comprova em função do escasso números de players que alcançam os primeiros lugares nos torneios e eventos mundiais, retirando-lhe, por vez, qualquer pecha de dependência do elemento fortuito ou acaso. Não há como dizer que esses jogadores contam sempre com o elemento sorte para manter suas posições de campeões.

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O Brasil de 2021 perde muito quando sustenta as mesmas crenças daquela Portugal que enviou os primeiros homens para cá. Somente em tributos, geração direta e indireta de empregos e expansão do turismo, vai-se bilhões de reais que poderiam abastecer os cofres públicos. Por outro lado, os empreendedores acabam refém da clandestinidade, alinhando-se à práticas obtusas para manter vivo um negócio em meio a tantas incertezas.

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De todo modo, vincular o pôquer ao universo dos jogos de azar é reforçar que o Direito brasileiro, de inspirações tão contemporâneas como a Constituição, ainda esteja represado em premissas moralistas que nem seus patronos sustentam mais. Logo, senão um motivo sanitário tão nobre de coibir aglomerações em tempos de Covid-19, marginalizar um esporte como o pôquer apenas reforça o porquê de o Brasil, um país tão jovem, ser tão arcaico.

Não se discute que é preciso intensificar as medidas de isolamento, prevenção e combate à propagação do Coronavírus. No entanto, forçar uma interpretação elástica para enquadrar praticantes de pôquer (seja em qual modalidade ou perfil de jogadores) como sendo contraventores, não parece ser uma boa jogada dos agentes públicos, pois até os melhores remédios - em dosagem excessiva - podem virar veneno.

*Eduardo Samoel Fonseca é advogado criminal, mestre em Processo Penal pela PUC/SP e especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca/Espanha e em Ciências Criminais pela PUC/MG. É professor de Direito Penal e Processo Penal e presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP - Subseção Penha de França

*Sean Kompier Abib é criminalista, mestre em Direito Penal (PUC/SP). É professor de Direito Penal e Processo Penal

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[1] https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,gabriel-do-flamengo-e-flagrado-pela-policia-em-cassino-clandestino-em-sao-paulo,70003647462, acessado em 14 de março de 2021.

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