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Açodamento e populismo penal

Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Incêndio na boate Kiss ocorreu em janeiro de 2013. FOTO: EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO Foto: Estadão

O tribunal do júri julgou culpados os quatro acusados pelo incêndio, mas um habeas corpus (HC) do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) permitiu que recorressem em liberdade. O ministro Fux suspendeu o HC por meio de uma liminar, atendendo a um mandado de segurança do Ministério Público gaúcho.

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O ministro Fux utilizou-se, em seus argumentos, de um instituto do direito processual civil para a decisão que tomou para o caso.

A suspensão de liminar é instituto tipicamente processual civil.

A Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, em seu artigo 4º, determinou que compete ao Presidente do Tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Por força do parágrafo primeiro daquele artigo 4º, aplica-se o disposto à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.

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Na visão de Celso Agrícola Barbi, trata-se de providência de caráter cautelar aquela que, na classificação de Calamandrei, diz respeito a medidas que antecipam a decisão do litígio, isto é, que se destinam a provocar uma decisão provisória, enquanto não se obtém a decisão definitiva.

O certo é que, diante da concessão de liminares de cunho satisfativo ou cautelar em ações civis públicas, a pessoa jurídica de direito público tem se valido do remédio para suspendê-la. Essas liminares teriam o caráter de providência executiva lato sensu ou ainda mandamentais, exigindo da Administração o ajuizamento dos remédios autônomos correspondentes ao recurso de agravo de instrumento e a suspensão de liminar.

Contra a liminar concedida a favor do pleito trazido pela pessoa requerente em ação civil pública tem a entidade pública duas saídas: o recurso de agravo de instrumento em face de decisão de caráter intelocutório, e a suspensão de liminar.

Trata-se de providência de cunho cautelar e de natureza metajurídica.

A maioria da doutrina é no sentido de que ao Presidente do Tribunal não cabe a análise da antijuridicidade. Fica patente a aplicação do princípio da supremacia do interesse público no uso de conceitos jurídicos indeterminados em prol da sociedade.

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Repito, com mil vênias, o presidente da República utilizou-se da aplicação daquele instrumento do processo civil para determinar o cumprimento imediato de uma decisão do Tribunal do Júri.

Não cabe ao presidente do Supremo tentar acelerar o cumprimento da pena num caso particular que nem foi submetido ao tribunal, por mais que a decisão lhe pareça justa. Se e quando o caso chegar ao STF pelos caminhos adequados, a decisão caberá ao colegiado, como bem disse o jornal O Globo.

Seria caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul examinar o habeas corpus apresentado pela defesa dos condenados por aquela decisão.

A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, em nota de repúdio, afirmou que a medida "se deu em injustificável supressão de instância".

Disse bem a Folha, em editorial, no dia 20 de dezembro do corrente ano, que "o recurso interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul --no linguajar técnico, suspensão de liminar-- nem sequer serve, pela legislação, para que se suspenda um habeas corpus concedido pelo Tribunal de Justiça gaúcho, como fez o presidente do STF."

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Esse é o caminho normal do processo. Não cabe falar em populismo penal objetivando a justiça imediata de uma condenação, com mil vênias.

A suspensão de liminar é medida de caráter cautelar própria do processo civil como dito acima. Não é recurso.

Sabe-se que o atual presidente do STF é favorável à prisão em segunda instância.

Mas a decisão do Tribunal do Júri, apesar de soberana (princípio da soberania do júri) não é decisão em segunda instância. A decisão do ministro Fux, data vênia, afronta o princípio da presunção da inocência, de sorte a exigir que se esgotem todos os recursos, para se ter a coisa julgada material e formal para se ter uma decisão no campo penal a ser executada.

Não se confunda, data vênia, os princípios da soberania do júri com o princípio da presunção da inocência.

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A Lei Anticrime de 2019 incluiu um dispositivo determinando a execução imediata das penas superiores a 15 anos quando houver uma decisão de júri. Fux invocou essa lei em sua decisão. Mas tramita no STF uma ação que contesta a constitucionalidade desse dispositivo, pelo conflito com o entendimento em vigor (o julgamento está suspenso por um pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski).

Para o caso repito, o presidente do STF aplicou uma lei de 1992, que fala em suspensão de liminares, instituto acima tratado, feita para proteger o Estado do festival de liminares em ações de Direito Público (como suspensão do pagamento de impostos ou contribuições). O uso dessa lei numa ação penal é questionável e abre precedentes insondáveis, como bem disse o jornal O Globo, em editorial, em 17 de dezembro do corrente ano.

Não se pode conviver com açodamentos e ativismos judiciais.

Esses verdadeiros atropelos trazem, sem dúvida, uma insegurança jurídica.

Disse bem o Estadão, em editorial, em 17 de dezembro de 2021, que a decisão do presidente do Supremo tem um alcance que vai além do caso da boate Kiss. "Toda a argumentação de Luiz Fux é um convite nada sutil para reabrir a discussão sobre o início do cumprimento da pena. A decisão tem, assim, um caráter de afronta não apenas à recentíssima jurisprudência do STF sobre os efeitos práticos da presunção de inocência, mas ao próprio caráter colegiado do Supremo."

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Sob nenhuma hipótese a soberania do Júri pode implicar cumprimento imediato da pena. Soberania, no máximo, pode significar aquilo que constou do voto recentíssimo do Min. Celso de Mello, quem decidiu, em sede do RHC 117.076/PR, que não cabe apelação ao Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos. Soberania é nesse sentido. E não no sentido de que a decisão do Júri esgota a discussão probatória contra o réu. Ou eliminemos os recursos do júri a favor da defesa.

Disse o ministro relator Ricardo Lewandowski:

"Se, por um lado, o princípio constitucional da presunção de inocência não resta malferido diante da previsão, em nosso ordenamento jurídico, das prisões cautelares, desde que observados os requisitos legais, por outro, não permite que o Estado trate como culpado aquele que não sofreu condenação penal transitada em julgado, sobretudo sem qualquer motivação idônea para restringir antecipadamente sua liberdade."

Em nome do princípio da presunção de inocência, a condenação pelo júri não é condição suficiente para a prisão definitiva. Esta somente poderá se dar com o trânsito em julgado da última decisão de mérito.

Trata-se de uma garantia constitucional a ser respeitada.

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Da decisão do tribunal do júri, obedecido o princípio da soberania do Júri, cabe recurso apelação ao Tribunal de Justiça local ou ao Tribunal Regional Federal competente, por decisão que foi contra a prova nos autos. Esse recurso de apelação examina fatos. Dela cabe, aí, sim, o recurso especial para a guarda da lei federal e ainda recurso extraordinário, pela guarda da Constituição. Os dois últimos recursos dizem respeito a matéria de direito.

Prisão definitiva há somente após o trânsito em julgado. Se houver prisão da decisão condenatória no tribunal do júri, cabe apenas prisão provisória, pois, prisão preventiva, se presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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