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Ação penal privada subsidiária da pública e os partidos políticos

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Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Ministro do Tribunal Superior do Trabalho se reúnem com o presidente no Palácio do Planalto. Foto: Dida Sampaio/Estadão

No dia 14 de setembro de 2021, o Grupo Prerrogativas, que tem feito um excelente trabalho pelo Brasil, apresentou parecer que, analisando as provas produzidas pela investigação, concluiu pela prática de inúmeros crimes comuns e de responsabilidade por parte do presidente da República e de outros agentes públicos e políticos. Ao final, foram capitulados os seguintes crimes:

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"Os fartos elementos probatórios estão a demonstrar a existência de "crime de responsabilidade' (artigo 7º, número 9, da Lei 1.079/50), de crimes contra saúde pública, como os crimes de epidemia (artigo 267 do Código Penal) e de infração de medida sanitária preventiva (artigo 268 do Código Penal), além da figura do charlatanismo (artigo 283 do Código Penal); de crime contra a paz pública, na modalidade de incitação ao crime (artigo 286 do Código Penal); de crimes contra a Administração Pública, representados pelos crimes de falso (artigos 298 e 304 do Código Penal) e de estelionato (artigo 171, §3º, c/c artigo 14, II, ambos do Código Penal), de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal), de advocacia administrativa (artigo 321 do Código Penal) e de prevaricação (artigo 319 do Código Penal). Por fim, não menos importante é a repercussão jurídica na esfera internacional das condutas examinadas pela comissão de especialistas, que configuram crimes contra humanidade (artigo 7º do Estatuto de Roma)."

A isso somo importante entrevista de Sylvia Steiner ao Estadão, em 26 de setembro do corrente ano, onde afirma que há provas 'abundantes' para uma condenação do presidente Bolsonaro no Tribunal de Haia. Ela atuou na Corte no período de 2003 a 2016.

Acrescentou a jurista que há o crime de causar epidemia onde há provas, inclusive, científicas pela comparação com outros países de que se tivessem sido tomadas as medidas adequadas no momento certo nós não estaríamos chegando neste número espantoso de 600 mil mortes. O crime de causar epidemia e incitação ao desrespeito às medidas sanitárias está muito bem demonstrado. Essas são condutas que estão muito bem demonstradas. A prova é abundante, até porque as pessoas do governo nunca tiveram muito cuidado em não se expor e o tribunal pode impor pena de reclusão, de até 30 anos, e penas de multas ao atual presidente da República.

O Relatório Final dessa mais importante Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada após a Constituição de 1988, a CPI da covid-19, instalada no Senado, será entregue à Procuradoria Geral da República.

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Ocorre que o atual procurador geral da República não tem tido uma conduta convincente na apuração de delitos cometidos pelo atual presidente da República.

Surge a alternativa da chamada ação penal privada subsidiária da pública.

Discute-se a ação penal privada subsidiária da pública.

São aqueles casos em que, diversamente das ações penais privadas exclusivas, a lei não prevê a ação como privada, mas sim como pública (condicionada ou incondicionada). Ocorre que o Ministério Público, Titular da Ação Penal, fica inerte, ou seja, não adota uma das três medidas que pode tomar mediante um Inquérito Policial relatado ou quaisquer peças de informação (propor o arquivamento, denunciar ou requerer diligências). Para isso o Ministério Público tem um prazo que varia em regra de 5 dias para réu preso a 15 dias para réu solto. Não se manifestando (ficando inerte) nesse prazo, abre-se a possibilidade para que o ofendido, seu representante legal ou seus sucessores (art. 31, CPP c/c art. 100, § 4º., CP), ingressem com a ação penal privada subsidiária da pública. Isso tem previsão constitucional (artigo 5º., LIX, CF) e ordinária (artigos 100, § 3º., CP e 29, CPP).

Diversa é a situação do Parquet nas ações penais privadas subsidiárias da pública, pois, no caso, é interveniente adesivo obrigatório. Pode intervir, diante da queixa-crime ajuizada pela vítima em face de sua inércia, obrigatoriamente, até para repudiar a ação, formulando nova peça processual (denúncia substitutiva) e até, diante do abandono do autor, prosseguir no polo ativo, ação penal indireta. Tal não se dá na ação penal privada propriamente dita e ainda naquela personalíssima. Afinal, se o Parquet for alijado da lide, na ação penal privada subsidiária da pública, haverá nulidade absoluta, que não se presume.

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Tourinho Filho (Código de Processo Penal Comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001, p. 103) disse, depois de reconhecer que o entendimento quanto à impossibilidade da queixa subsidiária nestes casos é "lição diuturna dos nossos Tribunais e posicionamento de toda a doutrina", pois "o art. 29 somente pode ter aplicação se houver desídia, relápsia do Ministério Público", aduz que se o Ministério Público "requer o arquivamento, não está sendo desidioso. Muito ao contrário. Todos sabemos que formular um pedido de arquivamento é mais laborioso que denunciar. Logo, não havendo desídia, nesse caso, não se pode admitir a atividade substitutiva do ofendido."

O Supremo Tribunal Federal também assim já se posicionou em mais de uma oportunidade:

"Admite-se a ação penal privada subsidiária em casos de desídia ou inércia do representante do Ministério Público, que não pode ser considerada como ocorrida no caso de arquivamento da representação determinado pelo Procurador-Geral da Justiça, por entender inexistir justa causa para a ação." (RT 613/431).

"Quando o Ministério Público, não tendo ficado inerte, requer, no prazo legal (art. 46 do CPP), o arquivamento do inquérito ou da representação não cabe a ação penal privada subsidiária." (RT 653/389).

Por sua vez, o grupo prerrogativas(A CPI da Covid e a alternativa de poderes imperiais do PGR, in PRERRÔ - Grupo Prerrogativas) e trouxe um precedente do STF merece especial atenção, pois contou com o reconhecimento de repercussão geral e estabeleceu parâmetros práticos e jurídicos para o exercício da ação penal privada subsidiária. Trata-se do ARE nº 859.251, relator ministro Gilmar Mendes, oportunidade em que o Plenário fixou que "(i) o ajuizamento da ação penal privada pode ocorrer após o decurso do prazo legal, sem que seja oferecida denúncia, ou promovido o arquivamento, ou requisitadas diligências externas ao Ministério Público. Diligências internas à instituição são irrelevantes; (ii) a conduta do Ministério Público posterior ao surgimento do direito de queixa não prejudica sua propositura. Assim, o oferecimento de denúncia, a promoção do arquivamento ou a requisição de diligências externas ao Ministério Público, posterior ao decurso do prazo legal para a propositura da ação penal, não afastam o direito de queixa. Nem mesmo a ciência da vítima ou da família quanto a tais diligências afasta esse direito, por não representar concordância com a falta de iniciativa da ação penal pública". Aquela matéria foi escrita por Antônio Carlos de Almeida Castro - Kakay, Marcelo Turbay Freiria e Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves, em 20 de setembro de 2021.

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A isso se some que o Grupo Prerrogativas nos lembra lição de Alessandra Mascarenhas e Juliana Damasceno Santos, no artigo "A legitimidade para propositura da ação penal privada subsidiária da pública em crimes que afetam bens jurídicos coletivos", quando defendem que não pode ser apenas o interesse da vítima a mover o aparato penal estatal, mas também o interesse público na apuração criminal, sobretudo em delitos que atingem a coletividade, ponderando que "(...) a garantia processual da ação supletiva deve estar a serviço da desejável proteção penal determinada no âmbito material pelo princípio da exclusiva proteção de bem jurídico. A ação penal privada supletiva pode ser o instrumento prático de realização da tutela penal de bens da comunidade quando há inércia ministerial".

Recentemente o projeto de lei que revoga a antiga lei de segurança nacional teve o dispositivo, que trata da aplicação dessa forma de ação penal legitimada para partidos políticos, vetada pelo chefe do Poder Executivo. Aguarda-se um pronunciamento do Poder Legislativo visando a derrubada desses vetos. Falo do Projeto de Lei n° 2.108/2021 que inaugurou, em seu artigo 359-Q, a possibilidade dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional ajuizarem ação penal privada subsidiária, no caso de o "Ministério Público não atuar no prazo estabelecido em lei, oferecendo a denúncia ou ordenando o arquivamento do inquérito". Essa hipótese estaria restrita aos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral, mas o raciocínio é o mesmo.

Dir-se-á que os partidos políticos podem ter legitimidade para ajuizar mandados de segurança coletivos na defesa da sociedade.

Observa-se o artigo 21 da nova Lei do Mandado de Segurança:

Art. 21. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária (...) Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser: I - coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica; II - individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.

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Observa-se que a lei restringiu o cabimento do mandado de segurança coletivo impetrado por partido político, uma vez que estabeleceu expressamente dois limites: a) a defesa apenas de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária; b) a proteção apenas de direitos ou interesses coletivos e individuais homogêneos, excluída a proteção aos direitos ou interesses difusos.

Observo, entretanto, que o ministro Gilmar Mendes entendeu que o partido político poderia impetrar mandado de segurança coletivo na defesa de interesses difusos, uma vez que se tratava de lesão imediata a direitos fundamentais individuais, em observância do acesso à justiça e do uso do remédio constitucional como via de defesa da ordem institucional. Tal se deu em decisão liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes em 18/3/2016, nos autos do MS 34.070/DF.

Estamos, afinal, diante da tutela de direitos coletivos.

Sobre isso já advertiu o ministro Dias Toffoli ao falar da ineficácia do sistema processual penal clássico, "em que apenas o titular do direito, por seu representante legal, pode demandar em juízo", aduzindo que, nos dias atuais, esse modelo "tem deixado a desejar no tocante à efetiva proteção jurisdicional dos direitos subjetivos individuais"( habeas corpus n° 143.641).

Estamos diante de uma tutela de direitos coletivos, próprio de direito das massas, que no âmbito do processo penal, não pode ficar entregue apenas a atuação de um único órgão estatal. Os partidos políticos, exercendo um importante papel em defesa as sociedade, poderão ter sua legitimidade concorrente disjuntiva reconhecida nessas hipóteses.

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Para isso deverá o Supremo Tribunal Federal proceder uma verdadeira construção normativa, uma densificação.

Densificar uma norma significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especificamente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos enfrentados pelo intérprete. Densifica-se um espaço normativo (preenche-se uma norma) para tornar possível a sua concretização e a consequente aplicação de um caso concreto.

Mas uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a "medida de ordenação", nela contida se decide um caso jurídico, ou seja, quando o processo de concretização se completa através de sua aplicação, como anotou Canotilho(obra citada pág. 1184), ao caso jurídico a decidir: a) a criação de uma disciplina regulamentadora ; b) através de uma sentença ou decisão judicial; c) através da prática de atos individuais pelas autoridades. Com isso uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata através de sua passagem a norma de decisão, que regula concreta e vinculativamente o caso carecido de solução normativa. Estamos diante de uma norma de decisão.

Essa a abordagem que espera-se seja feita pelo guardião maior da Constituição, em prol daqueles dispositivos normativos que resguardam a ação penal privada subsidiária da pública.

Aguardemos um pronunciamento do STF que poderá vir em tema concreto.

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*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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