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Abuso de poder chapado, e daí?

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Por Pedro Barbosa Pereira Neto
Atualização:
Pedro Barbosa Pereira Neto. FOTO: MPD/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Una Giornatta Particolare, filme de Ettore Scola, trata do encontro de duas pessoas, Antonieta e Gabrielle (interpretados por Sophia Loren e Marcelo Mastroianni), narrando os dramas pessoais desses personagens (ela esposa de um fascista, ele homossexual obrigado a viver dissimuladamente) no momento em que a Itália de Mussolini recebe a visita de Adolf Hitler. Era 6 de maio de 1938. Como pano de fundo do drama pessoal desenvolvido no pequeno apartamento em Roma, a reunião de milhares de cidadãos italianos saudando fanaticamente os líderes fascistas da Europa na primeira metade do século XX.

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A lembrança desse filme me veio à cabeça agora, no 7 de setembro de 2022, quando vi o atual presidente da República transformar o evento cívico nacional da Independência numa desabrida campanha eleitoral, sem nenhuma institucionalidade, decoro ou respeito pela sociedade brasileira, respaldado por centenas de milhares de pessoas que faziam coro ao histrionismo presidencial.

A memória desse filme me fez pensar na regressão institucional que estamos vivendo, no momento em que um presidente da República se vale (e abusa) da sua força política para constranger o Estado de Direito, atuando sem peias e sem limites.

Um dos desafios de maior importância da lei eleitoral é a preservação da igualdade de chances entre as candidaturas durante a campanha. Pretende-se que as desigualdades de poderes e seus eventuais abusos não sejam determinantes numa eleição. Entre as diversas medidas tomadas pelo legislador para inibir a quebra da isonomia eleitoral está a  determinação de neutralidade ao poder público, ou seja, toda esfera de poder do Estado, e de quem quer que seja seu eventual representante, não pode patrocinar meios a favor ou contra determinada candidatura. Isso é crime e é ilegal. Ninguém pode se valer do Estado para alavancar candidatura alguma.

A utilização da festa cívica de 7 de setembro de 2022 em favor dos interesses eleitorais do candidato à reeleição e atual presidente da República, Jair Bolsonaro, que teve lugar em Brasília e Rio de Janeiro, corporifica de modo inaudito um chapado caso do abuso do poder político[1]. Chapado porque houve um amálgama, uma junção, uma ligação tão estreita entre a festa cívica nacional e os atos de campanha eleitoral, formando um evento de corpo único, que não dá para defender, com um mínimo de respeito à hipótese factual, a ideia de compartimentalização entre o ato oficial e o de candidato. E inaudito pois, até então, a violação da lei eleitoral jamais ocorrera à vista de todo o país, em pleno feriado nacional e com ampla transmissão pelos meios de comunicação social, público e privados. A magnitude do evento, ademais, com o emprego e a exploração da imagem das Forças Armadas, assumirá para sempre um papel destacado na história dos ilícitos eleitorais nessas terras.

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A consequência para a violação da lei eleitoral (abuso de poder político) é a cassação do mandato, se eleito o candidato, e a inelegibilidade por 8 anos, além de incorrer na chamada Lei da Ficha Limpa (arts. 22, XIV, e 1º, I, "h", da LC 64/90, com alteração da LC 135/90).

Mas talvez o que entre para a história nacional não seja a grandeza do ilícito eleitoral testemunhado por todos, mas sim o esgarçamento do Estado de Direito. Porque o que se tem colhido entre analistas políticos é que a Justiça Eleitoral não terá força política para restaurar a violação da lei eleitoral, e se o fizer, ameaçará a estabilidade institucional. É isso mesmo: cumprir a lei no país virou risco institucional!

O atual presidente da República, com efeito, parece que alcançou uma espécie de imunidade legal diante da omissão das instituições responsáveis por fazer cumprir as leis. Pode fazer o que quiser, que nada, absolutamente nada, acontecerá. Os exemplos se multiplicam. Daí o bordão "e daí?" consagrado pelo político. Como lembra Mafei, os crimes de responsabilidade praticados por Bolsonaro se assemelham a um jogo de bingo: "a cada dia pode-se marcar um novo crime cometido na cartela do Impeachment. Não há dúvidas sobre se Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, mas apenas quantos e quais ele cometeu"[2].

Vale sempre recordar, com Ferrajoli, que as instituições de garantia são anti-majoritárias (PJ e MP) justamente porque devem garantir os direitos de todos. Precisam atuar independentemente da contingente vontade popular e sancionar os eventuais atos ilícitos dos titulares dos poderes públicos visto que sua legitimação está no fiel cumprimento da lei e da Constituição em prol de toda a sociedade[3].

A escalada do atual chefe do Executivo em direção à violação da lei e a baixa expectativa de sua responsabilização por parte das instituições de garantia põe em xeque o  conceito de Estado de Direito. Se a aplicação do direito não está mais assentada no governo das leis e sim no poder do mais forte - seja ele quem for - regredimos no pacto civilizatório, voltamos ao estado pré-hobbesiano onde quem tem mais força se impõe, simplesmente assim.

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O Estado brasileiro nunca se notabilizou pelo tratamento equânime entre seus cidadãos, especialmente os mais fortes. A assimetria no trato da cidadania sempre foi uma constante entre nós. Mas era visível o esforço, a partir da CF/1988, de buscar superação, ainda que tímida, das enormes desigualdades que notabilizam o funcionamento do sistema de justiça.

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Os homens, sejam eles quem forem, de direita ou de esquerda, ricos ou pobres, praticam crimes e cometem malfeitos, e as instituições, num regime democrático, devem tratar todos com igual consideração. Regra basilar. Não pode haver "demonizados" e "imunizados" perante a lei e as instituições, assinala Vieira[4].

O que está em jogo no Brasil é isso: o pacto civilizatório em torno da ideia do Estado de Direito firmado em 1988.

Regredimos muito. Há um travo amargo no que estamos testemunhando. Uma sensação de sufocamento, de constrangimento e de vergonha por ver tanta omissão diante de tantos crimes, o que possivelmente justifique a conexão com o filme de Scola, porque também ali os personagens, Antonieta e Gabrielle, se sentiam deslocados diante do contexto inaudito e da tragédia que se prenunciava.

[1] TSE - Glossário do Tribunal Superior Eleitoral - Abuso do poder político. "O abuso do poder político ocorre nas situações em que o detentor do poder, [...] vale-se de sua posição para agir de modo a influenciar o eleitor, em detrimento da liberdade de voto. Caracteriza-se dessa forma, como ato de autoridade exercido em detrimento do voto. (...)". Disponível em:  https://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos-iniciados-com-a-letra-a>.

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[2] Mafei, Rafael. Como remover um presidente - Teoria, história e prática do impeachment no Brasil. Rio da Janeiro, Zahar, 2021, p. 246.

[3] Ferrajoli, Luigi. Principia iuris - Teoría del derecho y de la democracia. Madrid, Editorial Trotta, vol. 1, 2011, p. 828, tradução livre.

[4] Vieira, Oscar Vilhena. A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. Revista Sur - Revista Internacional de Direito Humanos, 6, ano 4, 2007.

*Pedro Barbosa Pereira Neto, procurador regional da República em São Paulo e associado do Movimento do Ministério Público Democrático

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

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Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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