O movimento da agência reguladora retira ou restringe benefícios dos usuários, porque reflete diretamente na qualidade dos serviços prestados e limita o direito de locomoção de outros tantos, pessoas carentes beneficiárias de passe livre, tais como os idosos e as portadoras de deficiência. O passageiro não terá mais a certeza de quando ocorrerão as viagens e poderá pagar muito mais caro pela passagem, uma vez que não existe mais controle sobre o preço da tarifa. E haverá, em breve, um aumento desmesurado das despesas com a manutenção dos ônibus em decorrência do sucateamento da frota, pelo desinteresse dos investidores em sua reposição, já que não há mais garantia de retorno desses investimentos.
No último mês, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou a Deliberação nº 955 para dar cumprimento à Resolução 71, do Conselho da Parceria Pública de Investimento (CPPI), órgão ligado diretamente à Presidência da República, que instituiu a livre concorrência, a liberdade de preços, de itinerário e de frequência. Essas medidas podem retirar o caráter de regularidade do serviço de transporte interestadual de passageiros, porque as empresas passarão a realizar as viagens só depois que a lotação assegurar a sua rentabilidade, o que provocará o cancelamento de viagens e, até mesmo, falta de serviço a inúmeras comunidades até então atendidas. Atualmente, como é um serviço público, mesmo se o ônibus estiver com apenas um único passageiro a viagem não pode ser cancelada e as empresas são obrigadas a atender todas as cidades, qualquer que seja o número de habitantes que necessitem do transporte coletivo.
Outro prejuízo muito relevante, porque repercute na segurança dos passageiros, foi a extinção da obrigação das empresas de fazerem a contínua renovação de suas frotas de ônibus. Veículos mais velhos, desatualizados, colocam a segurança das estradas e dos passageiros em risco, quebram com mais frequência, exigem maiores gastos com a manutenção e, ainda, emitem mais gases poluentes na atmosfera.
Todas as alterações promovidas pela ANTT ocorreram sem qualquer consulta à sociedade, como determina a lei em casos de regras novas expedidas pelas agência reguladoras, o que caracteriza um evidente desvirtuamento do procedimento previsto para alteração da regulamentação, já que não se pode retirar ou restringir direitos dos usuários sem a realização de audiência pública.
A linha liberal do atual governo com foco no livre mercado, ainda que mereça aplausos de todos que almejam a mínima intervenção estatal no domínio econômico, não pode comprometer os direitos e prerrogativas conquistados, ao longo de décadas, pelos usuários dos serviços públicos.
A abertura de mercado de forma indiscriminada e a desregulamentação completa da prestação do serviço público de transporte de passageiros podem causar prejuízos irreparáveis à qualidade e à segurança do serviço prestado pelas empresas de ônibus.
A contínua modernização das relações entre o Estado e o particular - que colabora com ele prestando serviços que lhe foram atribuídos pela Constituição Federal - não pode se sobrepor aos interesses de milhões de vidas que dependem do transporte interestadual de passageiros para realizarem seu direito fundamental à locomoção pelo território brasileiro.
*Flávio Maldonado é advogado e atua como diretor da Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passagens (ANATRIP).
*Sérgio Antônio Ferreira Victor é Doutor em Direito do Estado pela USP, Professor do Programa de Mestrado em Direito da UniNove e advogado (ANATRIP).