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A vitória do soft power: o avanço da política regulatória no Brasil

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Por Felipe de Paula
Atualização:
Felipe de Paula. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Acaba de ser publicado o Decreto n. 10.411, de 30 de junho de 2020, que regulamenta a análise de impacto regulatório (AIR) e a avaliação de resultado regulatório (ARR) em órgãos e entidades do poder público federal. Em momento em que os acertos em ações públicas transitam entre o raro e o inexistente, a medida específica merece comemoração. Se não propriamente pelo seu conteúdo, ao menos pela sedimentação de importante ciclo para a política regulatória brasileira.

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Políticas regulatórias em sentido amplo almejam aperfeic?oar o processo de elaborac?a?o de normas e, fundamentalmente, incrementar sua qualidade e eficácia. Guarda-chuva que orienta o processo de regulação setorial que conhecemos - sanitária, energética etc -, é meta-política que busca a melhoria de outras intervenções públicas. Tecnocrática, promete afastar o achismo e a normatização às cegas em prol de escolhas públicas minimamente informadas, avaliadas e orientadas.

O tema não é novo. Consta da agenda da OCDE desde 1995 e, embora sem plena convergência, evolui a passos largos pelo planeta. Em nível europeu, abordagens especificamente voltadas ao tema como o Better Lawmaking, o Better Regulation e o Smart Regulation sucedem-se, com atualizações constantes e reiteradas. Nos EUA, metodologias de AIR como a análise custo-benefício são conhecidas e utilizadas há décadas.

Sua caixa de ferramentas é variada. Parte de elementos tradicionais de qualidade textual (drafting) e alcança aspectos de mecânica regulatória (o como fazer para alcançar os objetivos almejados). Apresenta ferramentas metodológicas sofisticadas, como o AIR (avaliação ex ante) - um de seus pilares - e o ARR (avaliação ex post). Considera aspectos de simplificação e redução de fardo regulatório como o controle de estoque. Aposta em testes e experimentos normativos. Mais recentemente, incorpora o ferramental da economia comportamental.

Em que pese sua difusão e evolução, por anos tal meta-política patinou no Brasil. Após breve soluço temático entre 1998 e 2002 e espasmos com o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (Pro-Reg), criado em 2007, a verdade é que ao menos até 2016 elementos de política regulatória existiram do ponto de vista formal, mas claudicaram na prática.

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Na Administração direta, exige?ncias relativas ao processo de elaborac?a?o normativa eram usualmente tidas como meca?nicas e burocra?ticas, um mero cumprimento de requisitos formais anacrônicos. Nas agências reguladoras, a abordagem era assistemática e descentralizada - práticas minimamente estruturadas (como, por exemplo, na ANVISA) coexistiram com ausência absoluta de uso ou interesse.

A partir de 2016, em aderência à agenda governamental de ingresso na OCDE consolidada sob o mantra da nova governança pública, a então Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República (SAG) deu peso ao tema. Para tanto, em decisão-chave para o sucesso da empreitada, inverteu a lógica de parte das tentativas anteriores de desenvolvimento da política regulatória, em geral, e da análise de impacto regulatório, em particular. Investidas top-down e a fórceps deram lugar a uma construção agregadora e incremental.

Ciente da necessidade de construir conhecimento técnico básico, massa crítica e consensos mínimos, a estratégia afastou-se da custosa implementação direta da AIR por lei e da recorrente veia inflexível dos órgãos centrais de governo em benefício do soft power interno. A partir de amplos grupos de trabalho com todas as agências reguladoras, dentre outros órgãos e entidades, apostou inicialmente na elaboração de documentos não vinculantes, validados em consultas públicas, como as diretrizes gerais e o guia de execução de AIR, recomendando à Administração Pública sua utilização. Insistiu em capacitação, destacou melhores práticas, realizou dezenas de eventos de sensibilização de governo e sociedade civil.

Em paralelo ao fomento da conjuntura necessária à efetiva evolução da política regulatória, seu marco normativo foi paulatinamente alterado. Foram publicados novos decretos de política legislativa (decreto 9191/17) e de governança pública (decreto 9203/17), com expresso foco na melhoria de processos e resultados e claras referências às boas práticas regulatórias mundiais. Decretos de controle de estoque regulatório foram publicados e sua prática foi então exigida nas Agências (decreto 10139/19).

A retomada de proeminência da agenda regulatória contribuiu, enfim, para que a oposição e o receio às previsões legais relativas às Análises de Impacto Regulatório fossem substancialmente reduzidas. Tais previsões foram finalmente aprovadas em 2019 - lei da liberdade econômica (art. 5º) e nova lei das agências reguladoras (art. 6º). O novo decreto sobre AIR e ARR, recém-publicado, vem encerrar tal ciclo.

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Embora mais consolide o já pactuado do que inove na prática governamental, o decreto deixa clara a sujeição ao AIR de órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, e não apenas de agências reguladoras. Explicita pontos importantes como a característica de mero subsídio à tomada de decisão da AIR e a exigência de que o gestor público que não acata seus resultados fundamente publicamente sua decisão (art. 15). Aposta na linguagem clara e acessível (art. 6º, I). Fomenta o ciclo avaliativo completo, ex ante e ex post (art. 13). Garante a transparência dos estudos.

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Não há dúvidas de que o decreto 10.411/20 está sujeito a questionamentos específicos. Embora consentâneo com o aspecto incremental que marca a estratégia em curso, já causa polêmica o enorme rol de hipóteses não sujeitas ao AIR, com destaque para os decretos (art. 1º, §3º), para boa parte dos atos oriundos do Ministério da Economia e para os atos não permitam, técnica ou juridicamente, diferentes alternativas regulatórias (art. 4º., I), algo que por vezes só se saberá após a realização do AIR, não antes.

Embora não decorra diretamente do decreto, também se vislumbram dificuldades práticas para a realização de avaliações de resultados em normas não precedidas de AIRs (art. 12), visto que invariavelmente são poucos claros os objetivos mensuráveis que serviriam de base para a análise. Finalmente, será bastante questionada a previsão do artigo 21, que afirma que a inobservância do decreto não causa invalidade da norma, enfraquecendo sobremaneira o próprio decreto.

Ainda assim, o decreto é relevante. Embora os AIRs não sejam panacéia, estando obviamente premidos por limitantes orçamentários, temporais, técnicos e políticos, fazem bem à gestão pública. Como ilustra a literatura internacional, seus principais ganhos não residem apenas nos resultados de cada estudo, mas sim, e fundamentalmente, na organizac?a?o e na procedimentalizac?a?o da administrac?a?o pu?blica, na protec?a?o do processo deciso?rio frente a grupos de pressa?o ilegi?timos, em seu uso como ferramenta de informac?a?o e na assunc?a?o de maior legitimidade a? atuac?a?o. É, portanto, avanço concreto. A despeito de necessários ajustes futuros, merece ser comemorado.

*Felipe de Paula, doutor em Direito pela USP e pela Universidade de Leiden, Holanda. Sócio de XVV Advogados

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